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Lula na África: amizade ou neocolonialismo?

Em suas viagens, o presidente iniciou uma reaproximação com o continente. Mas ações predatórias de multinacionais brasileiras são obstáculos. É preciso ir além das “relações macro”. Voos direitos, assistência ao imigrante e trocas alternativas podem ser o começo

Por: Antonio Gomes | Créditos da foto: Ricardo Stuckert/PR. Presidente Lula durante encontro com o presidente República da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em 2023

Pela terceira vez em pouco mais de um ano de mandato, o presidente Lula está novamente em solo africano, dando fortes indícios de que embarcamos, efetivamente, em uma retomada das relações do Brasil com o continente.

Iniciadas de maneira violenta com o tráfico de escravizados no início do século XVI, praticamente interrompidas com o fim deste em meados do século XIX, e retomadas consensualmente no início dos anos 1960, as relações Brasil-África vêm, desde então, oscilando em sucessivas ondas de aproximação e afastamento, muito ligadas (ainda que não apenas) às escolhas políticas dos governos brasileiros em exercício.

A última aproximação, considerada por muitos uma inflexão, teve início com a primeira ascensão de Lula à presidência em 2002/2003, e chegou ao seu auge no primeiro governo Dilma, entrando depois em um processo de declínio consolidado com o golpe de 2016.

Como discutido anteriormente neste Outras Palavras1, o governo Bolsonaro significou um trágico apagão nessas relações, de modo que a expectativa de retomada destas com a vitória de Lula (e da democracia) era enorme entre estudiosos e entusiastas do assunto.

A primeira viagem do atual mandato de Lula à África ocorreu já em julho de 2023, quando, voltando de uma cúpula da UE-CELAC2, o presidente fez uma escala no arquipélago de Cabo Verde, encontrando-se então com o primeiro-ministro do país.

Primeiro destino de Lula na África, Cabo Verde é considerado também o primeiro ponto de contato histórico entre o Brasil e o continente (ainda no tempo do colonialismo e da escravidão), e coincidentemente (ou não), foi lá também que Lula deparou-se com a primeira polêmica desta retomada de relações conduzida por ele: o presidente agradeceu, publicamente, a África pelo que foi produzido durante o período da escravidão3, discurso encarado por alguns como certa romantização do passado escravocrata brasileiro.

Se o teor ou o contexto de sua fala podem ser debatidos, o que ficou cristalino neste primeiro episódio da retomada, contudo, foi algo básico, e que deveria ser o ponto de partida de qualquer discussão sobre as relações entre o Brasil e o continente africano: elas foram iniciadas com a violência colonial e o tráfico de escravizados, e carregam consigo, inexoravelmente, uma contradição histórica original.

Um mês após visitar Cabo Verde, Lula embarcou mais uma vez para o continente africano em agosto de 2023, desta vez com destino à África do Sul, Angola e São Tomé e Príncipe. O objetivo, então, era participar das cúpulas do Brics4 e da CPLP5, além de promover a cooperação bilateral (e empresarial) entre o Brasil e esses países.

Mais uma vez os destinos escolhidos foram parceiros históricos do Brasil no continente, e mais uma vez a contradição se fez presente: seja pelos motivos das viagens – é conhecida a discussão sobre a assimetria inerente à Cooperação Sul-Sul (CSS), da qual blocos como o Brics e a CPLP são parte fundamental –, seja por outra afirmação considerada “polêmica” do presidente.

Em Angola, Lula mostrou-se indignado com o fato de “um país do tamanho do Brasil” não ter “voos diretos para o continente africano”6, despertando, como sempre, reações inflamadas nas binárias redes sociais. Na verdade, o Brasil quase sempre teve, e tinha em agosto passado, algumas poucas ligações aéreas diretas com a África (inclusive com Angola), mas talvez a indignação de Lula fosse com o fato de que nenhuma empresa brasileira fosse responsável pela operação dessas rotas – a Latam só retomou posteriormente seus voos para Joanesburgo, e todas as outras rotas eram operadas por empresas estatais africanas.

Seja como for, a segunda visita de Lula à África, em seu terceiro mandato, apenas confirmou o que todos sabiam (ou ao menos deveriam saber, a essa altura do campeonato): que as relações Brasil-África são, como qualquer relação política, essencialmente contraditórias.

Passados mais seis meses, eis que Lula encontra-se novamente, em fevereiro de 2024, em solo africano. Parece claro que a retomada está mesmo em curso, e parece claro que a CSS é parte fundamental deste processo, ainda que agora com novos parceiros. Desta vez, Lula escolheu o Egito e a Etiópia, recém-ingressados no Brics, como destinos, sendo que na capital etíope o presidente participará também da cúpula da União Africana como convidado especial. Curiosamente, Addis Abeba tem há quase 10 anos uma ligação aérea direta com o aeroporto de Guarulhos (operada pela companhia estatal etíope Ethiopian Airlines), e já desde 2023 está em discussão a implementação de uma rota comercial regular entre o aeroporto paulista e cidade do Cairo7.

Se os destinos são novos, porém, a bagagem das contradições continua a mesma: como candidato a líder da CSS, o Brasil é muitas vezes (mal-)visto como um agente hegemônico (para alguns, até sub-imperialista), cujos interesses se resumiriam basicamente a importar commodities africanas para seu capitalismo interno e expandir suas empresas multinacionais em direção a mercados africanos potencialmente lucrativos. Nessa perspectiva, e sendo a formação socioespacial brasileira também baseada na violência colonial, escravocrata e racista, chega mesmo a parecer impossível, nos termos atuais, a possibilidade de construir uma relação política com a África livre dessas contradições.

Francamente falando, essa impossibilidade não é apenas aparente: ela é real.

É impossível, pois não é possível que uma relação política fundada na violência, e conduzida secularmente por agentes hegemônicos do capitalismo, seja livre de contradições.

É impossível, pois não é possível que algum tipo de relação política, que pressupõe o envolvimento de grupos sociais, seja livre de contradições.

Mas o fato de ser essencialmente contraditória não significa (ou não deveria nunca significar) que ela deva ser abandonada. Até porque é a partir da própria contradição que as possibilidades de uma outra relação entre o Brasil e a África são criadas.

Voltando ao assunto dos voos, quando o Brasil se reaproximou de Cabo Verde no início do século XXI, uma nova rota aérea ligando o arquipélago ao Ceará foi simultaneamente inaugurada. Pensada como uma forma de possibilitar negócios e facilitar o trânsito de estudantes universitários, rapidamente ela foi aproveitada pelas chamadas rabidantes8 para fazer compras na capital cearense e revender nos mercados populares de Cabo Verde, animando inclusive a produção têxtil doméstica na periferia de Fortaleza9.

Mas este não é, obviamente, o único exemplo de dinâmica popular nascida desta reaproximação política e econômica entre o Brasil e a África, e que a princípio foi elaborada “pelos” e “para” os agentes hegemônicos.

Quem mora em São Paulo e costuma frequentar o centro da cidade, já deve ter percebido o surgimento e crescimento de um comércio de rua, de lojas de roupa e de restaurantes africanos nas redondezas, com origens as mais diversas no continente e que vêm dando uma nova dinâmica à complicada (mas fascinante) área central paulistana.

Ainda em São Paulo, a criação de um centro cultural africano10 por um artista e animador cultural congolês prova também que, a reboque dessas (fundamentais, ressalte-se) relações institucionais e diplomáticas de alto escalão, há muita cooperação também sendo realizada pelas frestas.

No sentido oposto (ou seja, do Brasil para a África), é digno de atenção o fenômeno crescente do Afroturismo, geralmente levado a cabo por mulheres negras e empreendedoras, e que, além de reforçar a importância dos lugares de presença negra no Brasil, também promove viagens para o continente africano como uma forma de turismo alternativo, longe dos tradicionais e estereotipados resorts e safáris11.

Sabemos, contudo, que nem tudo são flores nestas dinâmicas populares – afinal, a contradição é o ponto de partida desta análise. A vida dos africanos no Brasil geralmente é bastante difícil, ainda mais para os que vêm para cá em situação de refúgio – como o episódio da morte brutal de Möise Kabagambe em 2022, em um quiosque no Rio de Janeiro, escancarou. Mas mais uma vez, essa faceta cruel da relação Brasil-África não pode servir como argumento para paralisá-la.

A contradição é um princípio humano, e de alguma maneira o mundo digital e das redes sociais imagina ser possível eliminá-la, tentando criar, muitas vezes apelando para o autoritarismo, um mundo livre dela. Mas se eliminar a contradição parece efetivamente impossível, talvez seja possível pensar como assumi-la responsavelmente.

As relações Brasil-África são compostas, inevitavelmente, por uma dimensão institucional e de escala macro, levada a cabo fundamentalmente por agentes hegemônicos estatais e privados. Mas elas são também, dialeticamente, compostas de uma dimensão popular e micro-escalar, que se retroalimenta da primeira, e que não está igualmente livre de suas contradições internas.

O geógrafo Milton Santos, em sua análise pioneira e crítica sobre a globalização12, dizia que este fenômeno poderia ser entendido de três maneiras: como fábula, como perversidade e como possibilidade. Inspirando-se nessa leitura, é possível dizer que, no caso das relações Brasil-África, há, sim, certa fabulação no discurso oficial brasileiro, como se tudo funcionasse sem sobressaltos. Há, também, muita perversidade neste processo, tanto do ponto de vista da atuação das grandes empresas multinacionais, quanto da vida cotidiana dos africanos no Brasil. Mas há simultaneamente muitas possibilidades oriundas destas relações, e do que elas podem ser e significar para os dois lados do Atlântico (e além).

Se o Brasil virou nas últimas décadas, e por nossa própria responsabilidade, um destino cada vez mais comum e desejado pelos imigrantes africanos, nada mais justo do que assumirmos nossa parte neste movimento, como por exemplo garantindo (através de políticas públicas) uma vida digna para essas pessoas em nossas cidades. Da mesma maneira, se o Brasil resolveu desembarcar novamente em solo africano como parece, por que não privilegiar (igualmente através de políticas públicas) agentes não-hegemônicos nesses projetos?

A pandemia pode ter bagunçado um pouco nossa noção de tempo, mas o fato é que nos últimos quase 10 anos esta foi uma pauta interditada no debate público brasileiro, e não foi parte das políticas governamentais como ciclicamente acontece desde o longínquo início dessas relações, ainda no século XVI.

Agora volta a ser, e a África felizmente reapareceu no cenário político brasileiro. Cabe a nós discuti-la seriamente e fazer das nossas relações com o continente uma pauta perene como nunca foi, cientes e assumindo, com responsabilidade, todas as contradições (históricas e atuais) que elas indiscutivelmente carregam consigo.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/lula-na-africa-amizade-ou-neocolonialismo/

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