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Massacre marca etnia indígena que luta contra marco temporal

Após protagonizar vitória histórica no STF em 2023, Laklãnõ/Xokleng, quase dizimados no século 20, aguardam desdobramentos da comissão de conciliação sobre o marco temporal que podem impactar seu território.

Por: Maurício Frighetto | Crédito Foto: Laklãnõ/Xokleng habitavam uma região entre o litoral e o planalto, que ia de Porto Alegre a CuritibaFoto: Silvio Coelho dos Santos

Quando estava no ensino médio, Walderes Coctá Priprá ouviu de um ancião que deveria continuar estudando para contar a saga do seu povo – uma etnia indígena quase dizimada no século 20 em Santa Catarina. A tarefa, no entanto, é dura. “A história dos Laklãnõ/Xokleng é de dor e massacre”, avaliou a historiadora e doutoranda em arqueologia. “E os conflitos continuam até hoje.”

OsLaklãnõ/Xokleng ficaram em evidência devido a uma ação movida pelo estado de Santa Catarina, que pedia a reintegração de posse de uma área de oito hectares da Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, no Vale do Itajaí. Na ação, o governo catarinense usou a tese do marco temporal – ideia pela qual os indígenas só poderiam reivindicar territórios se estivessem vivendo no local na promulgação da Constituição, em 1988.

O STF decidiu que o caso teria repercussão geral, ou seja, serviria de base para todos os julgamentos sobre o mesmo tema. Por 9 votos a 2, o tribunal considerou a tese inconstitucional em setembro de 2023. A vitória, no entanto, durou pouco. O Congresso reagiu e promulgou a Lei do Marco Temporal (14.701) para demarcação de terras indígenas.

Cinco ações chegaram ao Supremo para discutir a constitucionalidade da lei. O ministro Gilmar Mendes, então, determinou a formação de audiências de conciliação para tentar uma solução consensual sobre os pontos em disputa. Na primeira reunião foi definido o calendário de discussões. O segundo encontro está previsto para ocorrer nesta quarta-feira (28/08).

Os indígenas, representados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), disseram que podem deixar a comissão. Pedem, entre outras coisas, que a Lei do Genocídio Indígena, como chamam a norma, seja suspensa até o fim dos debates. A história e as disputas pelas terras dos Laklãnõ/Xokleng podem ajudar a entender o que está em jogo nesta negociação.

“O corpo é que nem bananeira, corta macio”

Não se sabe ao certo o que significa Xokleng, um nome dado à etnia por antropólogos. Eram chamados pejorativamente de bugres ou botocudos, devido a um artefato que os homens usavam na boca. Segundo Coctá Priprá, eles se reconhecem como Laklãnõ – algo como “povo do sol” ou “filhos do sol”. “Quando Laklãnõ ficar bem conhecido, deixamos de usar Xokleng.”

Os Laklãnõ/Xokleng habitavam uma região entre o litoral e o planalto, que ia de Porto Alegre a Curitiba. Viviam da caça e da coleta e tinham conflitos com outras etnias, como os Guarani e Kaingang – atualmente os três povos vivem juntos na TI Ibirama-Laklãnõ, situada nos municípios catarinenses de José Boiteux, Doutor Pedrinho, Vitor Meireles e Itaiópolis.

Vista aérea da Terra indígena Ibirama-Laklãnõ
Terra indígena Ibirama-Laklãnõ foi homologada em 2013. Foto: Anderson Coelho/AFP

Com a chegada dos europeus ao Sul do Brasil, sobretudo alemães e italianos, o inimigo mudou. Para proteger os recém-chegados, a então Província de Santa Catarina e as companhias colonizadoras chegaram a contratar bugreiros, homens que caçavam e matavam os indígenas.

Os Laklãnõ/Xokleng eram afugentados “pela boca da arma. O assalto se dava ao amanhecer. Primeiro, disparava-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão. O corpo é que nem bananeira, corta macio. Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança”, relatou um bugreiro ao antropólogo Silvio Coelho dos Santos no livro Os Índios Xokleng – Memória Visual.

“Terra usurpada pela força”

Aos poucos, os indígenas foram encurralados pelas frentes de colonização de imigrantes no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. À medida que as cidades avançavam pela floresta, os recursos ficavam escassos e os conflitos por espaço e comida aumentavam. “A terra estava sendo usurpada ao índio pela força. Os governos tinham seus interesses. As companhias de colonização também. É fácil de compreender, portanto, que em muitos casos tanto o índio, como o colono, foram vítimas”, escreveu o antropólogo dos Santos em 1997.

Os indígenas foram sendo dizimados, como definiu Santos, em “práticas genocidas”. Na análise de Coctá Priprá, era uma luta desigual. “Chegou um momento em que os indígenas disseram: ‘nós vamos ter que encontrar uma estratégia para nos entregar para os brancos, se não, todos nós vamos morrer'”, relatou.

Bugreiros com mulheres e crianças indígenas
Bugreiros eram contratados por governos locais para caçar e matar os indígenas. Foto: Collection of Silvio Coelho dos Santos

Teve início então um processo chamado de “pacificação”, embora a situação dos indígenas confinados na Reserva Duque de Caxias, primeira denominação da TI, tenha continuado dramática. Foram proibidos de fazer seus rituais e até mesmo de caçar e coletar para evitar o contato com os colonos. Trabalharam, em muitos momentos, como escravos. Em 1914, havia aproximadamente 400 pessoas no local; em 1932, 126 pessoas. Atualmente, há mais de 2 mil pessoas vivendo no local.

Embora houvesse a promessa de uma terra de 60 mil hectares, os indígenas foram perdendo espaço gradativamente. Na década de 1970, o regime militar começou a construir a Barragem Norte dentro da TI para represar a água do Rio Hercílio e minimizar as inundações em cidades localizadas a uma altitude mais baixa, como Blumenau.

Com a barragem, os Laklãnõ/Xokleng perderam cerca de 90% das suas terras agricultáveis, tiveram que se dividir em aldeias e passaram a conviver com inundações, que, inclusive, causaram mortes por afogamento. O problema persiste até hoje. Em outubro de 2023, o governo catarinense fechou as comportas da estrutura para proteger as cidades rio abaixo, mas a água represada atingiu os indígenas, fazendo com que muitos tivessem que deixar suas casas.

Em 1996, a terra indígena, agora chamada de TI Ibirama, chegou a seu menor tamanho: 14 mil hectares. No entanto, um novo estudo antropológico definiu que a área deveria ter cerca de 37 mil hectares e, em 2013, foi homologada a TI Ibirama-Laklãnõ. Desse processo foram geradas duas ações que pararam no STF.

A primeira, formulada por cerca de 300 proprietários de terra, quer anular a homologação de 2013 – a Ação Cível Originária (ACO) 1100. A segunda, do governo catarinense, pediu a reintegração de posse de oito hectares, em uma área em que a TI se sobrepõe à Reserva Biológica do Sassafrás. Esta segunda, que se tornou o Recurso Extraordinário (RE) 1017365, culminaria com a inconstitucionalidade do marco temporal. Mas a lei promulgada no Congresso pressiona as duas ações.

Longo processo para a demarcação de terras indígenas

Atualmente, há 787 terras indígenas no Brasil, de acordo com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Dessas, 156 estão em fase de estudo, a primeira fase do processo demarcatório. Outras 486 estão regularizadas ou reservadas, marcando o fim do processo, quando as áreas são reconhecidas em cartório.

É um processo longo e que gera discussões, ainda mais com a tese do marco temporal. Os indígenas temem que todas as terras, mesmo as regularizadas, possam ser afetadas conforme o resultado da comissão no STF.

Rafael Modesto, advogado do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) que defende os indígenas nas duas ações no STF, afirma que a Lei do Marco Temporal impede, na prática, a demarcação da TI Ibirama Laklãnõ. “A terra está em fase de homologação. Mas, com a lei, ela teria que retornar na Funai para fazer uma instrução nova com base no marco temporal”, explicou.

Mulheres Laklãnõ/Xokleng
Indígenas foram encurralados pelas frentes de colonização de imigrantes no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Foto: Collection of Silvio Coelho dos Santos

As duas ações no STF estão prontas para julgamento – a RE, embora já tenha sido votada, está numa fase de embargos de declaração. Segundo o STF, não há prazo para elas irem a plenário. A DW perguntou de que forma as audiências de conciliação podem afetar o julgamento das duas ações, e a assessoria do STF respondeu que é preciso aguardar as audiências para saber o encaminhamento que será dado.

O governo de Santa Catarina informou que entrou com embargos declaratórios, assim como os indígenas, mas não informou o teor da petição.

Coctá Priprá continua pesquisando e contando a história do seu povo, como pediu aquele ancião quando ela estava no ensino médio. É doutoranda na Universidade de São Paulo (USP), onde segue pesquisando a arqueologia indígena. Na sua dissertação apresentada na pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ela descreveu os lugares de acampamento e memória dos Laklãnõ/Xokleng.

Ela espera que a dissertação sirva como uma ferramenta de luta porque registrou lugares que marcaram e que marcam o território do seu povo. “E assim, o povo segue lutando, visto que muitos entes queridos foram mortos nesse processo, em nome da chamada ‘civilização e progresso’. Mas, como disse nosso ancião Edú Pripra, ‘quando cai o sangue de um Laklãnõ na terra, se levanta dois para lutar pelos nossos direitos’.”

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/massacre-marca-hist%C3%B3ria-de-etnia-ind%C3%ADgena-que-luta-contra-marco-temporal/a-70057976

 

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