Em 2022, 58% dos alunos de cursos de licenciatura desistiram de se formar. Jovens professores desistem do magistério após 5 anos, pelas más condições de trabalho e sofrimento mental. Em 15 anos, estima-se que faltarão professores na educação básica
Por: Mariana Serafini, na CartaCapital
O futuro da educação básica está ameaçado pela falta de professores. Ao menos 58% dos alunos de cursos de licenciatura, destinados à formação docente, abandonaram a universidade antes de receber o diploma, revela o Censo da Educação Superior de 2022, o mais recente levantamento sobre o tema divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, o Inep, vinculado ao Ministério da Educação. Esta é a maior taxa de desistência da década. Se a tendência persistir, em apenas 15 anos o País não terá profissionais suficientes para lecionar na educação básica. O apagão revela-se ainda mais grave no segundo ciclo do ensino fundamental e no ensino médio, cujos alunos mais pobres passarão a receber uma bolsa-permanência criada pelo governo Lula. E também em áreas do conhecimento específicas, como física, matemática e química.
Em um país no qual o acesso ao ensino superior ainda é um privilégio para poucos, chama atenção o fato de sobrarem cadeiras vazias nos cursos de licenciatura. Nas universidades públicas, 26,4% das vagas estão ociosas, porcentual que atinge 32,45% nas instituições privadas – um claro sintoma do desprestígio da carreira docente no Brasil.
“Os profissionais mais experientes não veem a hora de se aposentar, e muitos novatos pulam fora do barco por não enxergar boas perspectivas em trabalho tão massacrante como é hoje o magistério no País”, lamenta Afonso Celso Teixeira, secretário-geral do Sindicato dos Professores do Município do Rio de Janeiro, Sinpro-Rio. O problema não são apenas os baixos salários, algo que acabou naturalizado pela sociedade brasileira. “O professor costuma trabalhar das 7h30 às 17h30. Em muitos casos, estende a jornada até as 22 horas. Isso, só em sala de aula. É uma rotina extenuante.”
Mesmo com essa maratona diária, as exigências dos empregadores só aumentam, sobretudo na rede privada. “Cobram que o professor elabore atividades, aulas de reforço, testes e mais uma série de coisas para alimentar as plataformas digitais dessas instituições. Exigem até criação de conteúdos para as redes sociais. A exploração ganhou uma nova dimensão”, relata o profissional. Para piorar, muitos gestores ignoram o tempo despendido pelos docentes para preparar aulas, corrigir provas, preencher relatórios e diários de classe, sem mencionar as reuniões com pais e eventos promovidos pelas escolas. “Com esse aumento das exigências, estamos chegando a um esgotamento. Vemos muitos jovens desistindo da carreira com apenas quatro ou cinco anos de magistério. É desolador.”
Segundo o Censo, a precarização da formação profissional também aumentou nos últimos anos. Hoje, a maioria das matrículas concentra-se na educação a distância, presente em mais de 3,2 mil municípios brasileiros. Em 2022, os alunos inscritos em cursos de licenciatura EAD representavam 81% do total. Quando consideradas apenas as instituições privadas, a proporção era ainda maior: 94%. Se, por um lado, é positivo democratizar o acesso ao ensino superior e levá-lo aos rincões do País, por outro, é quase inexistente o controle de qualidade desses cursos. Com professores mal capacitados, dificilmente seus alunos terão um desempenho brilhante.
O explosivo aumento das matrículas EAD e o reduzido número de professores que lecionam nessa modalidade – em 11 universidades, a proporção é superior a 500 alunos por docente – acenderam um sinal de alerta no MEC. “Estou bastante preocupado com a qualidade desses cursos. É claro que eles facilitam muito a vida do trabalhador, que não precisa mais se deslocar para a faculdade, mas temos de avaliar que tipo de curso pode ser ofertado a distância, zelando pela boa formação do profissional”, afirmou o ministro Camilo Santana ao comentar os dados do Censo.
Secretária responsável pela área de saúde laboral na Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, a CNTE, a professora Francisca Pereira da Rocha Seixas alerta que as más condições de trabalho, a instabilidade profissional e a falta de um plano de carreira têm afetado diretamente a saúde mental dos profissionais da área. “Por mais que tenham acontecido alguns avanços nos últimos tempos, como a aprovação do piso nacional para a categoria, não há atrativos na profissão”, explica. Segundo a especialista, no estado de São Paulo, as principais causas de afastamento de professores atualmente estão ligadas à estafa, burnout, síndrome do pânico, depressão e ansiedade. “As condições desfavoráveis que nós vivemos, principalmente pela desvalorização profissional, têm levado a essa desistência enorme. As pessoas simplesmente não aguentam.”
Seixas também denuncia a precarização nas contratações e as crescentes denúncias de assédio moral. Em São Paulo, grande parte dos professores da rede pública possui contratos temporários, pois o governo paulista se recusa a abrir novos concursos. Os profissionais da chamada “Categoria O” estão na base da pirâmide: recebem remunerações menores, não têm os mesmos direitos dos concursados, não contam com plano de carreira, com aumento progressivo de salário, e ainda se sentem inseguros para denunciar as más condições de trabalho. “Com a pandemia de Covid-19, muitos problemas que já existiam se aprofundaram. Aumentou a evasão escolar, ocorreu um atraso educacional, e isso tudo traz novas dificuldades para o professor lidar em sala de aula. Além disso, sabemos que na maioria dos estados e municípios, a cobrança por um bom desempenho dos alunos é desproporcional às condições de trabalho oferecidas aos docentes.”
Heleno Araújo, presidente da CNTE, diz estar muito preocupado com o atual cenário, no qual mais de 60% dos professores em atividade no País atuam com contratos temporários. “Essa alta desistência também é fruto do descaso e da violência institucional promovida pelo Estado brasileiro.” A Constituição, afirma o dirigente sindical, assegura que o magistério deve ser desempenhado por profissionais selecionados em concursos públicos. No entanto, a maior parte dos estados e municípios têm optado pelas contratações temporárias. “Essa precariedade permite o pagamento de salários abaixo do piso”, denuncia Araújo.
O presidente da CNTE acredita, porém, ser possível reverter esse quadro e valorizar a carreira docente, desde que haja vontade política. Para isso, o primeiro passo deve ser a ampliação dos concursos públicos. “Todo o quadro de pessoal dentro da escola precisa ser concursado, do porteiro ao diretor da escola. Isso é fundamental para garantir a estabilidade desses profissionais e atrair o interesse dos mais jovens.”
Atualmente, a desistência nos cursos de licenciatura só é menor entre os estudantes beneficiados por alguma política pública de inclusão no ensino superior. Enquanto a taxa geral de abandono gira em torno de 58%, como relatado no início da reportagem, entre os alunos do ProUni o porcentual é de 40% e, entre os contemplados pelo Fies, de 49%.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-apagao-de-professores-no-brasil/
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