Em extremo oposto ao dilúvio no Sul, a maior planície alagável do planeta e sua população sofrem para se recuperar de estiagem histórica. Aumento dos focos de calor em 1.033% em relação a 2023 e chuvas abaixo da média pioram as projeções
Por: Leandro Barbosa, na Pública
Lourenço Pereira Leite nasceu e cresceu no Pantanal. São 53 anos de vida na maior planície alagável do planeta. Foi nela que ele aprendeu a pescar e se tornou parte da terceira geração de pescadores da sua família, constituída por indígenas Guató e negros escravizados que trabalhavam em fazendas em Cáceres, em Mato Grosso, a mais de 200 km de Cuiabá, capital do estado. O aprendizado dos seus antepassados levou o pescador a entender qual é o canto dos pássaros que avisa que a chuva estava chegando, um som que ele tem escutado cada vez menos desde 2020, quando o Pantanal passou seguidamente a enfrentar secas severas.
“A nossa previsão do tempo vem dos animais. E eles estão quietos. Não escuto mais na mesma frequência o canto do [pássaro] chapéu-velho [Mesembrinibis cayanensis]. São os animais que anunciam a chuva. É no som do jacaré e do bugio que a gente tem ideia da água que vai cair. Porém tá tudo diferente. O cupim mesmo não voa mais para sinalizar que tem muita chuva, por exemplo. E tudo isso sinaliza que vamos enfrentar muita seca aqui no Pantanal”, afirma Lourenço.
A “previsão dos animais” encontra amparo na ciência. A estimativa da meteorologia é que o Pantanal deve voltar a enfrentar neste ano uma seca intensa e perigosa. Em abril, os níveis dos rios do Pantanal já ficaram muito abaixo do mínimo esperado para esta época do ano, indicativo de menor ocupação da planície pantaneira pelas águas, com consequente aumento de áreas secas. Dados do MapBiomas Água indicam que o Pantanal é o bioma com a maior tendência de redução da superfície de água no Brasil, com uma retração de 81,7% entre 1985 e 2022.
As chuvas são as principais responsáveis pelo transbordamento dos rios no Pantanal. Em novembro e dezembro é quando costumam ocorrer as primeiras chuvas. É o período em que se inicia a cheia e as águas inundam e cobrem a planície até abril. Entre maio e junho, começa a vazante, ocasião em que os rios e lagoas permanentes começam a retornar aos seus limites. Já nos meses de julho a outubro, a planície volta a ficar seca.
Na temporada de cheia deste ano, porém, choveu bem menos que o esperado, com acúmulos de precipitação em algumas regiões somente em março e abril, o que não foi o bastante para mudar o cenário. Devido à intensa estiagem, o solo absorveu boa parte da água, e o que restou não foi suficiente para promover o pulso d’água para inundar o bioma.
Um marco dessa situação é o nível do rio Paraguai na região de Fuerte Olimpo, no sul do Pantanal, já no Paraguai, onde as águas caminham para deixar a planície. É um dos mais baixos dos registros. No dia 15 de abril deste ano estava em 2,83 metros, ante 5,44 metros um ano atrás. Mesmo em 2020, que registrou a pior seca dos últimos 60 anos, o nível do rio nesta época do ano no local era de 3,37 metros, ou seja, 54 centímetros acima do observado neste ano, segundo dados da Dirección de Meteorología e Hidrología do Paraguai.
Na régua que fica em Ladário (MS), a mais antiga das réguas de medição do rio Paraguai, com cem anos de existência, os níveis da água também estão inferiores aos níveis de 2020. Entre 31 de janeiro e 30 de abril deste ano, o nível do rio subiu de apenas 60 centímetros para 1,43 metro. Em 2020, no mesmo período, o nível passou de 1,18 metro para 1,82 metro.
De acordo com Serviço Geológico Brasileiro (SGB), que opera o sistema de alerta hidrológico no rio Paraguai desde 1994, estão sendo registrados déficits de precipitações da ordem de 300 mm no período chuvoso de 2023/2024, que teve início em outubro do ano passado. Foram observadas apenas 60% das chuvas esperadas para esses meses. O SGB aponta que essa condição tem potencial de provocar uma estiagem bastante severa neste ano, especialmente no segundo semestre, quando ocorre o período seco.
“É importante olhar o conjunto de processos em andamento [a seca que segue se agravando, os fogos intensos que ocorrem desde 2019 e que fogem do ciclo natural do Pantanal e o aumento de temperatura por conta da crise climática] e a pouca quantidade de água na planície”, pontua o biólogo Alcides Faria, fundador e diretor institucional da ONG Ecologia e Ação (Ecoa), que promove ações para a preservação do meio ambiente no Pantanal, no Cerrado e na bacia do rio da Prata.
“Pouca água significa mais ‘combustível’ e território para o fogo. Nos últimos anos, várias ‘normalidades’ foram quebradas no Pantanal. Um exemplo recente foi o fogo no mês de novembro de 2023, que nunca havia acontecido”, complementa.
De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), do início de janeiro até esta segunda-feira (29), o Pantanal, que se espalha no Brasil entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, registrou 646 focos de calor – alta de 1.033% em relação ao total registrado nos primeiros quatro meses do ano passado, que tiveram 57 focos no bioma.
A situação não era tão ruim para o quadrimestre desde 2020, quando o período teve 1.815 focos. Em 2019, ano que também teve seca, houve 674 focos no período.
Faria explica que a preocupação aumenta porque a partir de junho está prevista a ocorrência do La Niña, fenômeno climático oposto ao El Niño e que se caracteriza pelo resfriamento das águas do Pacífico. As consequências para o Centro-Oeste costumam variar, mas ele foi associado à forte seca de quatro anos atrás no Pantanal.
“Em 2020, quando ocorreu um dos grandes incêndios, também prevalecia o La Niña. Segundo o NOAA [organização do governo norte-americano para oceanos e atmosfera], nada impacta mais o clima global do que os fenômenos La Niña e El Niño. É necessário atenção. Prevenção é a palavra da hora para o Pantanal”, afirma.
A reportagem procurou as secretarias de Meio Ambiente de Mato Grosso e Mato Grosso Sul para saber quais ações estão sendo planejadas e/ou executadas para mitigar os impactos socioambientais da seca no Pantanal, reduzir os riscos de incêndios e dar suporte às comunidades afetadas, mas não obteve respostas até a publicação desta reportagem.
No dia 18 de abril, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima promoveu um seminário com os dois estados para abrir os trabalhos de construção do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento (PPCD) do bioma, previsto para ser lançado ainda neste ano.
Na ocasião, os governadores Eduardo Riedel (MS) e Mauro Mendes (MT) assinaram um acordo de cooperação técnica a fim de uniformizar legislações sobre o uso de recursos do bioma nos dois estados. O acordo, com prazo inicial de 60 meses, inclui também ações de monitoramento da fauna silvestre, o fomento do turismo e da produção sustentável e a elaboração do Plano Integrado de Prevenção, Preparação, Resposta e Responsabilização a Incêndios Florestais para o bioma Pantanal brasileiro.
Sem água, sem pesca, sem futuro
O pescador Lourenço Pereira Leite conta que navegar pelo rio Paraguai e seus afluentes se tornou desafiador e caro. Com a seca, a piracema não aconteceu, os peixes não subiram os rios. Com isso, os pescadores, sem a possibilidade de atalhos devido à falta de água, têm feito percursos de 18 horas ou mais para chegar a regiões onde ainda é possível pescar algo. Mas a quantidade de peixes também diminuiu, e o que se pesca, por vezes, não paga nem o combustível do barco. Muito menos as despesas do mês.
“A água é nosso braço, perna e mão. É vida para nós. A seca impacta tudo. Nossa locomoção está cada vez mais difícil. Pegar peixe, pior. Eu já cheguei a ir mais de 200 km da minha casa para tentar pescar e garantir o sustento da minha família”, conta. A aflição de Lourenço o leva às lágrimas ao lembrar que é da pesca que ele garante os estudos das filhas que cursam direito e biologia. Ambas se dedicam no intuito de ajudar a comunidade ribeirinha onde o pai vive, à beira do rio Sepotuba, um importante afluente da bacia do alto rio Paraguai. “Eu estou muito abalado. Eu luto para que minhas filhas consigam estudar, mas parece que minha luta [a pesca] não vai ter futuro. É muito difícil.”
Em Mato Grosso do Sul a situação é a mesma. É o que conta a ribeirinha Nilza Bandeira, de 59 anos. Pescadora e apicultora em Miranda, cidade a cerca de três horas da capital, Campo Grande, ela vive o drama de ter seus dois trabalhos impactados pela falta de água. “O impacto é em tudo, né? A chuva para nós é essencial aqui no Pantanal. Porque, quando não tem chuva, não tem peixe. O rio não enche, os peixes não sobem para desovar. Se não chove, não tem florada. Sem ela, não tem fruto nativo. Tanto para alimentar a gente, os peixes e os outros animais”, afirma Nilza. “Na época da cheia, a gente sai para pescar por remessa e chega a pegar até 400 kg de peixes. Neste ano, na Semana Santa, meu cunhado saiu para pescar, passou 20 dias no rio, voltou só com 30 kg”, lamenta.
A seca no Pantanal é motivada por diversos fatores: mudanças climáticas, degradação de nascentes, desmatamentos dentro e fora do bioma. A ecóloga Solange Ikeda, do Instituto Gaia e professora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), campus de Cáceres, lembra que o Pantanal é uma planície dentro de uma bacia hidrográfica, a bacia do Paraguai, e que essa planície depende de muitas conexões.
“Se as nascentes são degradadas, se a parte alta dessa bacia é degradada, os sedimentos descem para os rios, o que leva à perda de uma grande quantidade de águas que inundaria essa planície alagável”, explica. “Então, um dos fatores desta seca é a degradação dos territórios, se também levarmos em conta a relação direta com águas que vêm de outros lugares, como da Amazônia, a partir dos rios voadores, e as nascentes no Cerrado”, diz.
Ikeda aponta ainda que tudo isso somado às mudanças climáticas torna a situação ainda mais difícil. “A gente vive uma seca extrema, e, ao mesmo tempo, ocorrem chuvas torrenciais que não são suficientes para o bioma. No mês de março, a média do nível da água no rio Paraguai [na região de Cáceres] nos últimos 60 anos ficava acima de 4 metros. Neste ano, o rio Paraguai oscilou entre 2 e 3 metros. Então, 50% do que era a altura da régua não subiu. É significativamente preocupante”, enfatiza a pesquisadora.
“Não existe a possibilidade de até a temporada de seca essa régua subir. Teria de chover praticamente todos os dias durante muito tempo”, complementa.
Onze pantanais diferentes, cada um com um comportamento
Além de sentirem o impacto sobre a pesca, as comunidades tradicionais do Pantanal já vivem perdas em seus cultivos agrícolas. Na aldeia Brejão, do povo Terena, em Nioaque (MS), a falta de água matou as plantações dos indígenas, que já contam com ajuda de cestas básicas do governo.
Alvino de Souza, um dos líderes Terena, que atua como brigadista, afirma que teme que a seca culmine em incêndios como os que ocorreram em 2019 e 2020, quando a intensidade do fogo ameaçou até mesmo a casa dos indígenas. Segundo ele, em alguns dias neste ano a sensação térmica superou os 40 ºC.
“Temos ido nas comunidades e escolas para orientar as pessoas e pedir que não coloquem fogo. E ficamos à disposição para ajudar em queimadas controladas. A gente vai lá e participa junto para não deixar o fogo se espalhar”, diz Souza. “A gente produz milho, arroz e feijão, mas o que a gente plantou a gente perdeu com a seca e o sol quente. Então, por assim dizer, não produzimos nada esse ano”, lamenta. Se as queimadas se intensificarem, o medo é que se percam até os coqueiros e algumas mangueiras que restam em pé.
As sucessivas crises enfrentadas nos últimos anos pelo Pantanal, que não é um ambiente homogêneo – estudos da Embrapa Pantanal identificaram 11 fisionomias diferentes no bioma –, geram desafios para sua recuperação. Para o biólogo André Luiz Siqueira, diretor-geral de programas e projetos da Ecoa, é necessário quebrar a narrativa de que o Pantanal é resiliente e se recupera fácil, visto que cada ecossistema dentro do bioma tem diferentes relações com o fogo.
“Diante dos eventos climáticos extremos, o período de seca tem se alargado e piorado a frequência dos incêndios. No ano passado, ocorreram queimadas até dezembro, o que historicamente não era possível [pois seria o período de chuvas e cheia]. Este ano, tivemos incêndios em pleno janeiro na serra do Amolar [Corumbá, MS], região habituada a uma permanente inundação. O impacto disso é incalculável”, afirma Siqueira.
“Se formos falar de polinizadores, por exemplo, a gente não tem nem como calcular quantos deles foram extintos ou a quantidade de aves migratórias afetadas. É difícil mensurar, os danos são enormes para diferentes regiões”, lamenta.
Para ele, o problema antecede os incêndios e está na falta de prevenção. “Há uma dificuldade enorme entre os [poderes] executivos, os órgãos oficiais de combate e demais instituições envolvidas em de fato falar sobre trabalhar a prevenção. O trabalho de comunicação, sensibilização e de controle precisa ser muito mais intenso do que realmente é. Precisamos falar sobre os incêndios durante todo o ano, não apenas em um determinado período ou quando eles acontecem”, defende.
“Os estados precisam superar as questões burocráticas e orçamentárias em relação à contratação de brigadistas e fazê-la antes do pico da temporada do fogo. Além disso, tem que haver uma resposta imediata a todos aqueles que de forma criminal provocam os incêndios.”
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/pantanal-e-a-seca-sem-fim/
Comente aqui