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A economia do projetamento de Ignácio Rangel renasce na China

Nova edição da Revista Princípios busca decifrar a China. Aqui está o conceito central para compreender uma das grandes esfinges de nossa época que combina formas superiores de planificação econômica e intervenção territorial.

Por: Revista Princípios | Crédito Foto: Agência O Globo. Ignácio Rangel: o que o livro trata apenas como virtude outros veem também como vício na obra desse pensador incomum das questões brasileiras.

Princípios, a mais antiga revista de marxismo em circulação no país é um periódico científico multidiciplinar que busca o avanço do pensamento crítico, da compreensão do socialismo e do desenvolvimento nacional brasileiro. Nesta edição nº 171, em duas partes, o tema é China e nova economia do projetamento.

Publicada pela editora Anita Garibaldi, a revista nasceu em 1981, na fase final da luta contra a ditadura militar. Em 2025 se completam 44 anos de publicações ininterruptas, ao longo dos quais a revista contribuiu para o desenvolvimento da teoria marxista, sempre em diálogo com os grandes temas da atualidade.

Definida como um periódico de “teoria, política e cultura”, Princípios tem um elenco de colaboradores de grande prestígio, que reúne intelectuais, pesquisadores, lideranças políticas, professores e escritores. Ao longo das últimas décadas a revista se consolidou como referência do pensamento democrático e progressista no debate de ideias do país.


Arenovação do marxismo e o exame dos caminhos da construção socialista sempre estiveram entre os objetivos que norteiam o trabalho editorial de Princípios. Esses mesmos objetivos motivaram o lançamento da chamada de artigos dedicada à nova economia do projetamento. Esse conceito, sobre o qual tem se debruçado uma equipe de pesquisadores liderada pelo professor Elias Jabbour, tem se mostrado profícuo o bastante para lançar nova luz não apenas sobre o fenômeno chinês — uma das grandes esfinges de nossa época — mas sobre a questão mais ampla da alternativa socialista na atualidade.

Não à toa, a referida chamada de artigos foi uma das mais concorridas da história recente da revista. Isso levou a Comissão Editorial a optar pelo lançamento de duas edições consecutivas dedicadas ao tema. A primeira delas, que o leitor tem em mãos, dedica-se à leitura da China como exemplo de nova economia do projetamento. A edição reúne estudos mais empíricos, que se debruçam sobre aspectos específicos da vida chinesa, buscando mostrar como a grande nação asiática renova modelos de planejamento, processo que aponta para um novo patamar da construção socialista. O próximo número da revista, por seu turno, trará artigos mais teóricos, com reflexões sobre o significado da nova economia do projetamento para o socialismo do século XXI.

Encontra-se na ordem do dia das ciências humanas e sociais a criação de uma teoria para compreender a China. Por que a análise da realidade chinesa demanda uma teoria? Trata-se de uma realidade particular, paralela às demais? A verdade é que o país tem inaugurado, ao longo das últimas décadas e de forma mais rápida no pós-crise financeira de 2007-2008, formas superiores de planificação econômica e intervenção rápida sobre o território, o que implica um maior domínio humano sobre a realidade — seja a natural, seja a sociocultural. Ora, se as teorias refletem níveis determinados de interação entre os seres humanos e o meio ambiente — podendo, mesmo, abrir caminho a novos modos históricos de produção —, é necessário admitir que o ferramental teórico disponível não é mais capaz de entregar uma visão de totalidade sobre o que acontece naquela região do mundo.

O nível de coordenação tanto do planejamento quanto do investimento alcançado pelos chineses entrega fatos e tendências que ainda nos escapam. Podemos elencar, a título de exemplo, o fato de nos últimos dez anos cerca de 200 milhões de chineses terem migrado do campo para a cidade sem a ocorrência das contradições e flagelos que são típicos desse processo na periferia do capitalismo. Podemos mencionar, ainda, a construção de 45 mil quilômetros de trens de alta velocidade em um espaço de 25 anos; a expansão metroviária para cidades “China adentro”; a modernização e elevação rápida da composição orgânica do capital na agricultura; o salto — quase único na história — para a formação de uma potência em matéria de energia renovável. A China vivencia, ainda, uma grande revolução em matéria de desenvolvimento urbano e regional, com iniciativas como o “Grande desenvolvimento do Oeste” e a erradicação da pobreza extrema. Sem falar da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative), carro-chefe de um extraordinário trabalho de integração que aponta mesmo para um modelo alternativo de globalização — a serviço dos povos, e não do capital.

A China de hoje está a operar um processo de transformação disruptivo cujas bases são tanto um poder político de novo tipo quanto o controle do Partido Comunista sobre a grande propriedade pública e a grande finança. Percebe-se que os desafios impostos pelas “contradições de múltipla ordem”, fruto desse processo tão rápido quanto único, abrem condições para mais experimentos sociais, como também para a transformação de quantidade em qualidade em todos os campos da ciência social aplicada. A explosão de novos experimentos e novas aplicações tem gerado, de forma quase sequencial, picos de “momentos Sputnik”.

É nesse contexto que pipocam noções como a de “milagre chinês”, reveladoras de certa impotência analítica. Afinal, quando algo passa a ser chamado de “milagre” é porque as teorias à disposição já deixaram de dar conta da realidade. Essa situação impõe um retorno aos fundamentos. Como parte desse esforço, é de fundamental importância revisitar os clássicos do desenvolvimento. Um dos mais vigorosos entre eles, o economista maranhense Ignácio Rangel, inspira os trabalhos veiculados nesta edição de Princípios. Seu opúsculo Elementos de economia do projetamento, de 1959, tem ajudado sobremaneira a fornecer novas explicações para as ocorrências que emanam da China. O projetamento, segundo Rangel, é a ciência da busca de uma razão superior na relação custo-benefício.

Se por um lado essa economia do projetamento morre junto com as primeiras experiências socialistas e o renascimento do keynesianismo militarizado nos EUA, por outro lado ela ressurge agora, na China, como “nova economia do projetamento”. Este dossiê de Princípios busca mostrar como a teoria rangeliana pode ser aplicada ao caso chinês. Não é despropositado afirmar, nesse sentido, que renasce no Brasil uma teoria capaz de nos entregar uma visão científica acerca dos novos desdobramentos da construção do socialismo, que têm hoje na China a nação protagonista desse processo.

Princípios traz ainda, nesta edição de número 171, textos voltados a outras temáticas, tecidos a partir de abordagens diversas. Um artigo complementa as contribuições do dossiê ao traçar, embora sem recurso à noção de “nova economia do projetamento”, um panorama da política industrial e, em particular, do papel jogado pelas empresas estatais chinesas no processo de catching-up que vem aproximando o país da fronteira tecnológica em áreas diversas.

Em tempos de debate sobre as dificuldades de comunicação da esquerda, uma engenhosa contribuição apoia-se nas teses de autores como Pierre Bourdieu e Jesus Martin-Barbero para analisar aspectos do discurso utilizado, nas eleições de 2022, pelo então candidato Luiz Inácio Lula da Silva. São apresentadas as razões do êxito de certas estratégias discursivas, assim como suas potencialidades e limites.

Compõe ainda esta edição um artigo que, à luz do lançamento da Política Nacional de Cuidados Paliativos (PNCP), reflete sobre o sentido humanista dessa política, propondo que se considere o sofrimento não apenas em sua dimensão fisiológica e individual, mas também como fenômeno social. Tal atitude implica o estreitamento das relações entre o serviço social e a área da saúde.

O tema da realidade chinesa retorna à revista em suas últimas páginas, que trazem uma fértil resenha sobre os livros “Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI”, de Giovanni Arrighi, e “Como a China escapou da terapia de choque”, de Isabela Weber, obras que ajudam na compreensão dos inovadores processos econômicos e sociais que se verificam na China contemporânea.

 

 

Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2025/04/a-economia-do-projetamento-de-ignacio-rangel-renasce-na-china/

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