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Dowbor: introdução à Economia da Brutalidade

Em dois setores econômicos (mineração e construção), dá-se combinação tóxica. Atividade depende do Estado, mas é explorada por empresas privadas, e negócios ocorrem em sigilo. Resultado: corrupção, golpes e intervenções externas

Por: Ladislau Dowbor

Mineração

O caso da mineração deixa esses desafios [os da governança dos bens comuns] particularmente claros. Por definição, ela explora de recursos naturais, ou seja, da natureza, e que não constituem propriedade no mesmo sentido em que sou proprietário da minha bicicleta, porque a comprei. Os nababos da Arábia Saudita e de outros países esbanjam suas fortunas, constroem elefantes brancos, com os royalties do seu petróleo. Para ter a minha bicicleta, eu trabalhei, ganhei dinheiro e comprei. No caso do petróleo, estão simplesmente sentados em cima, e vendem os direitos de extração. E se dizem produtores de petróleo, como se fosse um produto, e não o acúmulo natural que durou mais de 100 milhões de anos. Trata-se aqui essencialmente de atividades mais extrativas do que produtivas.

Recursos energéticos, como carvão, petróleo e gás; minerais metálicos, como ferro, zinco ou alumínio; não metálicos, como fosfatos; minerais raros, como o molibdênio e outros; tudo isso constitui de certa forma o sangue da economia moderna. E não nos colocamos muito a questão de como são apropriados, transformados e comercializados. A dimensão política é aqui dominante. A forma como o Brasil resistiu à apropriação do petróleo pelas corporações multinacionais, ainda nos anos 1950, com a imensa campanha “O petróleo é nosso”, ou mesmo o enfrentamento das novas iniciativas de privatização fazem parte de uma consciência política que precisa ser reforçada. Iniciativas semelhantes na Venezuela, na Bolívia, no Equador e em outros países têm a ver não só com a eficiência da extração, mas, sobretudo, com quem se apropria do recurso, e com que fins. No caso brasileiro, a partir de 2019, temos não só a privatização como também a entrega a grupos internacionais. Com uma canetada, a propriedade do minério de ferro controlado pelo Estado através da Vale do Rio Doce, hoje Vale S.A., foi entregue a um particular, Eike Batista, que fez fortuna vendendo um minério que nunca precisou produzir e que claramente pertence a um país, e não a um particular.

Análise da negociata e das incompetências à parte, temos aqui de repensar a lógica do setor: é um recurso natural e não renovável. Constitui, nesse sentido, um bem comum, cuja apropriação precisa ser baseada na lógica do interesse social e de longo prazo. 1 O problema é que é difícil pensar no longo prazo e no interesse social quando se é uma grande corporação, cujos acionistas exigem lucro a curto prazo, ainda mais quando muitos deles são, na realidade, grandes investidores institucionais, ou seja, bancos e fundos de investimento. Aqui tampouco adianta muito pensar em gente bem ou mal-intencionada. Um diretor de empresa que não maximiza os resultados no sentido estrito – lucro – terá vida curta na companhia. E quando esgotam os recursos em determinado país, as grandes corporações se deslocam para outro.

Na corporação não mandam os técnicos e pesquisadores, e muito menos os responsáveis pelo departamento de responsabilidade social e ambiental, com os seus códigos de ética, ou ainda o departamento de compliance – mandam os departamentos financeiro, jurídico e de marketing.

E por trás deles, os grupos financeiros que fixam, através dos seus representantes no conselho de administração, as metas financeiras a serem atingidas. Em inglês fica mais claro: não se preocupam com os outcomes, resultados amplos econômicos, sociais e ambientais para todos nós, e sim com os outputs, ou seja, a produtividade imediata e os resultados para os acionistas.

Na área da mineração isso é bastante evidente. Os golpes de Estado tentados ou realizados se deram nas últimas décadas na Líbia, no Oriente Médio, na Venezuela, no Equador, no Sudão e também no Brasil, todos donos de amplas reservas de petróleo. A tragédia do Irã data da ditadura instalada pelos britânicos e pelos americanos ainda nos anos 1950, para impedir a nacionalização do petróleo, aliás, na mesma época em que saíamos às ruas na campanha d’O petróleo é nosso. 2 A Arábia Saudita, onde as mulheres são constrangidas nos seus direitos básicos, onde se cortam as mãos de um autor de furto (hoje com bisturi) e onde ainda se cortam cabeças em público (de modo tradicional), é considerada como regime amigo e, portanto, democrático. De pai para filho. Não está sujeita a golpes.

Aqui há muito pouco espaço para mecanismos de mercado. Trata-se de gigantes corporativos mundiais, e são negociações políticas, intervenções armadas e sistemas de corrupção que definem as regras do jogo. O excelente relato de John Perkins, ex-economista-chefe de grande corporação da área, apresenta de forma clara como se dão as negociações, como se configuram as regras do jogo. Sempre há referências ao mercado de minérios ou de energia, porque o nome mercado faz parecer que há concorrência, uma certa legitimidade por trás da força bruta 3. Na realidade não há concorrência no sentido econômico, de numerosas unidades competindo para prestar o melhor serviço: o que há são relações de poder, uso de exércitos oficiais ou privados (no Iraque o sistema terceirizado de corporações militares privadas, como Blackwater, é maior do que o aparato propriamente militar). Não há nenhuma lei econômica que explique que, no decorrer de uma década, o preço do barril de petróleo tenha dançado entre 17 e 148 dólares, e durante um mês entre 120 e 60 dólares. Nem a oferta, nem a demanda poderiam variar dessa maneira.

Veremos mais adiante como funciona a parte comercial das commodities desse tipo, hoje na mão basicamente de dezesseis traders situados em paraísos fiscais 4. O que a visão de conjunto do setor nos aponta é uma guerra planetária crescente por recursos que estão minguando, enquanto a demanda mundial se amplia, e os impactos indiretos, como o aquecimento global, se agravam. As futuras gerações, que serão privadas dos recursos esgotados, mas herdarão os impactos ambientais, evidentemente não estão aqui para votar. A nossa democracia ainda é bem tímida, e o termo mercado essencialmente é um véu de respeitabilidade que recobre uma rapina absurda.

O essencial da orientação, no caso dos recursos minerais, é que sendo eles uma herança da natureza, e não um “produto”, devem ser controlados pelo sistema público, de forma que a exploração do petróleo, por exemplo, sirva para financiar infraestruturas, educação, pesquisa e outros investimentos no futuro do país, em vez de enriquecer acionistas que ganham sobre o que não precisaram produzir. Uma alternativa é contratar empresas privadas para a extração, mas assegurar forte tributação, de forma que a extração sirva para o setor público realizar investimentos básicos. Simplesmente privatizar equivale a descapitalizar o país e comprometer o seu futuro.

Aqui também trazemos algumas sugestões que podem ser consideradas evidentes ou simplesmente necessárias. Talvez não sejam muito realistas, dadas as relações de força atuais, mas são amplamente discutidas internacionalmente:

• Regulação internacional dos traders, basicamente 16 grupos que controlam o conjunto da extração, comercialização e financiamento das commodities em geral;

• Geração de informações transparentes sobre as reservas naturais: os estudos existem, inclusive com publicações internacionais, mas não são transformadas em informação generalizada às populações;

• Retomada da batalha pela Taxa Tobin, taxação modesta, mas generalizada, das transações financeiras internacionais, assegurando a base de informação financeira que sustenta o conjunto do sistema de apropriação privada de bens naturais;

• De forma geral, o forte controle público é essencial, e como se vê na Nigéria, em Angola, hoje no Brasil e em tantos países, sem a defesa firme de direitos soberanos, o que predomina é a simples rapina.

Construção

Estamos aqui apresentando os mecanismos básicos que prevalecem nos diversos setores, porque não se pode falar de “ciência econômica” no abstrato, sem entender as engrenagens da economia real. De certa forma, para entender o conjunto, é melhor partir de como funcionam os setores concretos de atividade, para depois gerar uma visão mais ampla e entender as articulações. Grande parte do debate econômico se dá sobre generalidades demasiado amplas para serem significativas. Com muita facilidade se afirma no Brasil que as taxas de juros absurdas são para nos proteger da inflação, ou que o desemprego é resultado de insuficiente liberdade da misteriosa entidade que chamam de “os mercados”. Afloram facilmente os ódios ideológicos, é o fígado que fala, não a cabeça. A ideologia é frequentemente um útil substituto ao conhecimento.

No setor da construção, como em outros setores, temos pequenos produtores que constroem casas, realizam pequenas obras nas prefeituras e coisas do gênero. E temos as musculosas corporações como a Odebrecht, a OAS e mais algumas que dominaram as grandes obras. Enquanto os pequenos concorrem realmente entre si, e podemos falar de mecanismos de mercado, o universo dos grandes funciona de maneira diferente, tanto aqui, com as empresas mencionadas, como nos Estados Unidos, com a Halliburton, e corporações semelhantes em diversas partes do mundo. A Halliburton emprega diretamente 60 mil pessoas, tem presença em oitenta países e elegeu Dick Cheney, seu presidente, para vice-presidência, com George Bush, nos Estados Unidos. Herdou os maiores contratos de reconstrução do Iraque, bem como contratos de exploração de petróleo. Grande parte dos massacres e do caos político no norte da África e no Oriente Médio, além da América Latina, tem as suas raízes nesta esfera onde interesses financeiros, políticos e militares se juntam 5.

Aqui é tradicional a confusão entre interesses públicos e privados. O mecanismo básico é simples, se tomarmos o exemplo dos sucessivos malufismos na cidade de São Paulo, os prefeitos e boa parte da Câmara são eleitos com muito dinheiro das construtoras e montadoras. Eleitos os amigos, aprovam-se as obras, basicamente de interesse das próprias empreiteiras, como viadutos, elevados, túneis e outras infraestruturas que, em nome de melhorar o trânsito, apenas paralisam progressivamente a cidade. Corredor de ônibus não rende para quem quer faturar com concreto, e a construção de metrô exige concorrências internacionais, o que dificulta o sobrefaturamento. E o sobrefaturamento, que frequentemente multiplica o preço das obras várias vezes o que realmente custou, permite financiar tanto a fortuna pessoal dos políticos e acionistas das empresas, como financiar a campanha eleitoral seguinte. É assim tão simples o principal mecanismo de desvio dos recursos públicos nesse setor. Dizer que os políticos são corruptos faz pouco sentido, as empresas privadas fazem parte da mesma máquina de transformação de recursos públicos em enriquecimento privado. Não há corrupto sem corruptor, ainda que seja vantajoso para as corporações se queixarem dos políticos.

Existem, é claro, as concorrências públicas, mas com a participação de grandes empresas que se contam nos dedos, basta se acertarem na fila de quem obtém qual contrato. A escolhida faz uma proposta com preços sobrefaturados, enquanto as outras apresentam preços astronômicos. A melhor ganha. Chamam isso de mercado das grandes obras.

Naturalmente, esse tipo de priorização das obras e escolha dos executantes tem pouco a ver com mecanismos de mercado, em que a concorrência levaria à escolha do projeto com melhor relação custo-benefício. No Brasil se desencadeou uma campanha contra a corrupção, o que é positivo, mas consistiu essencialmente na desestruturação da Odebrecht, forte concorrente internacional dos gigantes americanos, em particular da Halliburton. É importante entender que a corrupção se combate gerando transparência nos fluxos financeiros, e em particular por parte dos bancos que transferem os recursos e conhecem perfeitamente as fontes e destinos de grandes volumes financeiros.

Prender corruptos como exemplo é útil, mas, afora o show midiático e a catarse pública, pouco muda, pois, se os mecanismos permanecem, sempre haverá felizes sucessores. Evidentemente, desestruturar as empresas em nome do combate à corrupção, isso quando nenhum grupo internacional – todos praticam as mesmas políticas – é controlado, é profundamente contraproducente para a economia. Em geral, cria-se uma imagem centrada nos políticos, o que deforma a realidade. Quando o dinheiro passa de uma mão para outra, há duas mãos em jogo. Outra consequência é que as grandes corporações beneficiadas são também grandes anunciantes, e haverá tanto mais anúncios (e apoio aos candidatos) quanto mais a mídia for subserviente. A publicidade é a forma pela qual a mídia obtém a sua parte do sobrefaturamento. Organiza-se a cidade para as empreiteiras, os automóveis e os grandes especuladores imobiliários 6.

Em termos práticos, o transporte coletivo de massa, que é a solução óbvia para qualquer metrópole, fica estagnado, o que prejudica toda a população. O resultado é uma cidade paralisada, com esgotos a céu aberto que poderiam ser rios que humanizam a cidade, enquanto regiões inteiras ficam inundadas todos os anos. Isso na cidade mais rica da América Latina, que dispõe de excelentes técnicos e institutos de pesquisa. Não são eles que decidem as obras. O Tribunal de Contas da cidade de São Paulo apenas rejeitou uma prestação de contas, a da Luiza Erundina. A grande corrupção é suficientemente forte para gerar a sua própria legalidade. Em 2014, a cidade sofreu com os cortes de água, devidos sobretudo à seca, mas, em particular aos 36% da água que se perde por falta de investimentos na distribuição. Viadutos são mais visíveis do que redes de esgoto e estações de tratamento. A cidade de Paris retomou recentemente o controle da água no município, frente aos desastres da privatização. Veremos esse ponto mais adiante, ao tratar da área de infraestruturas.

Onde a indústria da construção funciona de maneira adequada, não é porque se deixou agir “as livres forças do mercado”, mas porque foram criadas fortes instituições de democracia participativa, assegurando transparência e controle por parte da cidadania. Em particular, as novas tecnologias permitem o rastreamento das transferências, bastando para tanto assegurar o livre acesso às transações. Em Londrina, um prefeito disponibilizou, em lugares públicos da cidade, terminais dos computadores da Secretaria Municipal da Fazenda. É o que funciona. Melhor do que tatear no escuro à procura de corruptos, e de apresentar na mídia, para gáudio da população, o eventual incauto que se deixou capturar, é acender a luz. Temos todos os meios informáticos para tanto. A mudança necessária está na geração da transparência.

Não há magia do tipo “mão invisível do mercado”: grandes recursos exigem controle e transparência, processos mais democráticos nas próprias decisões econômicas, bem como a geração de capacidade de planejamento a médio e longo prazos, que é o que permite ventilar as opções, submetê-las a debates, e evitar os fatos consumados. O que não impede que, para milhares de pequenas obras realizadas por pequenas empreiteiras locais, seja melhor deixar agir as negociações diretas entre contratantes. Essa dualidade entre gigantes que formam um oligopólio, e milhares de pequenas empresas que podem perfeitamente se regular através do mercado, vamos encontrá-la nos mais diversos setores. Quando os gigantes tentam puxar para si a legitimidade da “competição” e do “mercado”, estão escondendo a realidade.

É importante ter claro que muito pior do que o sobrefaturamento e a corrupção que caracterizam as grandes construtoras em tantos países – não é nosso privilégio – é a deformação das prioridades: hoje, em São Paulo, temos viadutos e marginais para os automóveis, mas o paulistano perde duas horas e quarenta minutos ao dia para ir trabalhar, um custo generalizado para a sociedade, por opções absurdas de transporte, tema que veremos mais adiante.

Algumas sugestões bastante óbvias, na linha do resgate de um mínimo de governança sobre as grandes corporações da construção:

• Acesso transparente aos contratos de grandes obras públicas: as opções de infraestruturas tendo grande impacto para a vida da população, é essencial que as informações sejam abertas;

• Apoio a organizações da sociedade civil especializadas, capazes de fazer as contra-avaliações dos contratos: a discreta negociação entre um político e uma empreiteira deve passar pelo crivo de quem não tem interesse financeiro na negociação;

• Contratação de avaliações por parte dos departamentos correspondentes nas universidades, ampliando a base científica de informações: temos hoje no mundo acadêmico excelentes pesquisadores, e o processo ajudaria a trazer a academia para mais perto do mundo real;

• Retomada das práticas de orçamento participativo, para assegurar a priorização adequada das obras em função das necessidades reais das comunidades: o processo foi em grande parte abandonado, não porque não funcionava, mas porque funcionava.

Veja em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/dowbor-introducao-a-economia-da-brutalidade/

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