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Vamos viver um novo ciclo democrático popular

Conversamos com escritor e frade dominicano Frei Betto, que enfrentou a ditadura e participou do governo Lula, para entender onde abrimos o flanco para o surgimento do neofascismo e resgatar o histórico da luta anti-imperialista desde a antiga Palestina com Jesus até o século XXI na América Latina. Para ele, com as eleições na Colombia e Brasil ano que vem, temos um “Luiz no fim do túnel”.

Por Rubens Goyatá Campante | Foto: (FarodiRoma)

Neste final de ano, conversamos com o jornalista, escritor e frade dominicano Frei Betto para tratar da resistência que Jesus articulava junto com os zelotes contra o império romano na antiga palestina, a importância da Teologia da Libertação nas lutas da América Latina e o papel dos dominicanos na guerrilha ao lado de Marighella.

Frei Betto foi dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica em 1962 e foi preso 2 durante a ditadura militar. A primeira vez, logo após o golpe de 1964, ficou 15 dias preso. Na segunda vez, em 1969, passou 4 anos na prisão. Após esse período assessorou vários governos socialista, em especial o de Cuba, e foi assessor especial do primeiro governo Lula. Ele é autor de vários livros, entre eles “Batismo de Sangue”, que virou um clássico do cinema e ganhou o Jabuti em 1983. Suas obras podem ser compradas em sua livraria virtual.

Essa entrevista foi editada para ter melhor compreensão na leitura. Ela pode ser vista em formato de vídeo aqui ou ouvida em todos os tocadores de podcast.


NU

Na historiografia parece que há dois Jesus, um de Nazaré que convivia com os Zelotas, que enfrentava o imperialismo romano e outro, de Cristo, santificado pela igreja católica, qual dessas versões seria mais fidedigna na sua opinião?

FB

Na verdade não há na cabeça de nós, cristãos, duas versões de Jesus. Há muitas versões de Jesus, depende da ótica ideológica, inclusive no próprio livro sagrado para os cristãos que são os evangelhos. Não há um único evangelho, há 4 evangelhos, o de Marcos, o de Lucas, o de Matheus e o de João. São quatro diferentes visões de Jesus. A igreja católica absorve as diferentes visões inclusive essa do Jesus militante. O Jesus que lutou contra o império romano.

Algo que nenhuma das versões pode negar é que Jesus morreu como um militante político. Não morreu nem de hepatite na cama, nem de desastre de camelo numa esquina de Jerusalém, ele foi perseguido, preso, foi julgado e torturado por dois poderes políticos: o judaico e o romano representado pela figura de Pilatos e mereceu a pena de morte dos romanos que era a crucificação. Então, a questão é essa, por que Jesus que na versão de alguns é uma pessoa tão amorosa, tão bondosa, tão maravilhosa, foi cruelmente assassinado na cruz? Ora, por uma razão muito simples, quando a gente abre os quatro evangelhos, a expressão “igreja” aparece apenas duas vezes. Assim mesmo, num único evangelho de Matheus e na boca Jesus aparece 122 vezes “Reino de Deus”. Então, na nossa cabeça hoje do século XXI a igreja parece que colocou Reino De Deus como algo que ficaria além desta vida, já na cabeça de Jesus não, o Reino de Deus é no projeto político que ele trouxe, por isso ele foi cruelmente assassinado porque ousou dentro de um reino de César anunciar um outro reino possível: o de Deus.

É como falar em socialismo dentro do capitalismo e em democracia dentro de uma ditadura. Essa é a razão pela qual ele foi cruelmente assassinado, então, todos nós cristãos, querendo ou não, somos discípulos de um militante político altamente revolucionário.

CSA

Gostaria saber um pouco sobre esse grupo, os “zelotas” que andava com Jesus. No livro do iraniano Reza Aslan, me parece que era um grupo muito interessante, um grupo político, que fazia uma militância mais ferrenha na antiga Palestina. Gostaria que você contasse um pouco como esse grupo atuava, quais as ligações históricas deles, como que se desdobrou e qual era a relação desse grupo com Jesus. 

FB

No tempo de Jesus, na Palestina do século I, havia vários grupos que lutavam contra a ocupação romana, o imperialismo romano, e um deles eram os zelotas. Os Zelotas defendiam um enfrentamento aos romanos com a luta armada, e não era a perspectiva de Jesus, até há suspeita – isso é muito discutido pelos especialistas em Bíblia que Judas Iscariotes teria sido um Zelote, justamente aquele que no fim acabou traindo Jesus porque ele esperava de Jesus, talvez, que esse reino de Deus fosse implantado imediatamente e ele teria um cargo proeminente nesse novo governo.

A perspectiva de Jesus vai numa outra direção: ele veio implantar as sementes de um novo projeto político e portanto ele não tinha essa perspectiva, vamos dizer, “leninista”, de primeiro tomar o poder para depois implantar uma nova sociedade. Não, ao inverso, como faz o MST hoje, ele já começou a implantar a nova sociedade pela sua prática militante. Todas as suas atividades durante os três anos de militância foram atividades para criar as sementes de um novo projeto de sociedade que se baseava em dois pilares: nas relações pessoais do amor e nas relações sociais da partilha dos bens. Então, Jesus não foi adepto dos zelotes e nem os zelotas foram adeptos de Jesus. Mas, eles constituíram um dos grupos entre outros tantos que enfrentaram o imperialismo romano durante aquele período de ocupação, e essa ocupação romana na Palestina durou de 63 A.C até o ano 70 D.C, quando Jerusalém foi totalmente destruída pelos romanos. Ou melhor, quer dizer, a destruição nos anos 70 durou nos primeiros quatro séculos da nossa era.

NU

Você foi adepto da Teologia da Libertação e é militante de movimentos sociais na América Latina. Como você vê a importância da teologia da libertação nesses movimentos? Porque ela foi muito importante em movimentos de resistência, como por exemplo na Nicarágua com o sandinismo. Como você vê o desenvolvimento da Teologia da Libertação no continente nessas últimas décadas, diminuiu ou aumentou? 

FB

Não fui adepto, eu sou adepto à Teologia da Libertação. A Teologia da Libertação está vivíssima! E se ela foi enterrada, se ela morreu, não me convidaram para o velório, não estou sabendo. Ela está viva muito atuante. Acontece que a Teologia da Libertação parte do lugar social e epistêmico dos pobres, ou seja, é a fé vista a partir da prioridade dada por Jesus que foi lutar pelo direito dos pobres.

Em nenhum dos livros de toda a Bíblia há um só versículo que diga que a pobreza é abençoada aos olhos de Deus. Pelo contrário: a pobreza resulta da injustiça, a pobreza é um mal. Por isso, em Jesus se coloca ao lado dos pobres e essa é a perspectiva que a Teologia da Libertação abraça. É uma reflexão da fé a partir do mundo do sofrimento da exclusão dos mais pobres. Por isso ela é muito perseguida e criticada pelas forças de direita e ela hoje continua muito atuante.

Até na revolução cubana, a Teologia da Libertação ainda não tinha despontado. Ela despontou na América Latina nos anos 60, principalmente a partir das conferências dos bispos em Medellín, em 1968. O primeiro livro da Teologia da Libertação é do Gustavo Gutiérrez, que é um teólogo dominicano como eu, mas de origem peruana, foi publicado em 1971. Então aí que ela começou a se propagar por toda a América Latina e os cristãos revolucionários a abraçaram, tanto nas guerrilhas da Colômbia, onde se destacou o padre Camilo Torres, como nas lutas da Nicarágua e El Salvador e também em outras lutas sociais como no Brasil. A Teologia da Libertação aqui bebeu na grande rede das comunidades eclesiais de base que fluíram durante os pontificados conservadores de João de Paulo II e Bento XVI. Hoje, com Papa Francisco elas se reavivam e a Teologia da Libertação continua muito atual. Os teólogos estão produzindo muitas obras, mas sobretudo essas comunidades de base, essas comunidades formadas por pessoas excluídas, marginalizadas, elas vem se fortalecendo agora no pontificado de Francisco, felizmente.

NU

Durante um tempo nos pontificados, como você falou, dos papas anteriores, a Teologia da Libertação não só foi criticada mas muitos dos seus adeptos foram perseguidos dentro do Vaticano, devido esse reavivamento, essas perseguições diminuíram ou está tendo um apoio? O que o Vaticano está fazendo em relação a isso agora? As correntes que os perseguiam pararam de atuar?

FB

Cessou inteiramente. Essa suspeita em relação a Teologia da Libertação acabou com o Papa Francisco que é um adepto da dela. Basta ler a encíclica dele “louvado seja” que é uma encíclica profundamente revolucionária e crítica ao capitalismo. Embora ele, inteligentemente, não chega a utilizar essa palavra, mas toda a análise estrutural que ele faz do atual sistema econômico predominante no planeta, esse sistema hegemônico globalizante, é uma forte crítica. Então hoje a Teologia da Libertação vem sendo reforçada e o Papa Francisco, inclusive, já convocou no vaticano quatro encontros de líderes de movimentos populares do mundo inteiro e aqui do Brasil. Participaram lideranças indígenas, o João Pedro Stédile que é um dos dirigentes do MST e tantos outros. São pessoas afinadas e identificadas com a Teologia da Libertação. Então, aquela suspeita e perseguição que ocorreram durante os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI não existe mais, felizmente.

Hoje, o que acontece é o inverso, muitas pessoas conservadoras da igreja se sentem muito incomodadas pelo fato do papa nos apoiar e receber no vaticano o teólogo o Gustavo Gutierrez. Eu também fui recebido por ele no dia 9 de abril de 2014. Então, isso realmente mostra uma virada no Papa. Agora, não é fácil mudar a igreja, porque a igreja é um elefante muito pesado. Eu diria até mesmo que hoje nós temos uma instituição com cabeça progressista e um corpo ainda conservador. Não é fácil fazer uma mudança para o progressismo numa estrutura depois de 34 anos de pontificados conservadores. Mas, de qualquer forma, é uma benção de Deus nós termos hoje um papa como Francisco, sem dúvida nenhuma o mais respeitável chefe de Estado do mundo. Aquele que tem uma voz muito autorizada e no entanto toma uma postura muito crítica aos que criticam o ambientalismo, aos que defendem a atuação do capital e que tomou medidas muito rigorosas para erradicar a pedofilia da igreja católica. Eu tenho só que aplaudir as iniciativas do papa Francisco, mas sobretudo é bom ler as encíclicas, os documentos que ele tem emitido porque são documentos muito avançados e eles nos ajudam a entender melhor a conjuntura internacional.

CSA

Além disso, foi muito importante o papel do Vaticano nesses últimos anos na questão das FARCS na Colômbia e também na negociação no último período do governo Obama na questão de Cuba para terminar os bloqueios. Agora tem surgido nas pesquisas em primeiro lugar na intenção de voto na Colombia um militante de esquerda que tem ligações com as guerrilhas e com a Teologia da Libertação, o candidato Gustavo Petro.

Após esse movimento que tivemos esse ano com três meses de insurreição, como você vê isso e o cenário da América Latina em relação ao Chile e o que aconteceu no Peru. Você que acompanha a política na América Latina nos últimos 40 anos, como você vê as placas tectônicas se mexendo, mas, sobretudo também com essas chances reais de vitórias da esquerda e com essa relação da Teologia da Libertação e o continente que é um dos mais católicos do mundo.

FB

Nos últimos 60 anos, a América Latina enfrentou vários ciclos políticos, o primeiro deles foi a disseminação das ditaduras militares. Todas elas foram patrocinadas pelo governo dos EUA e por isso há até uma piada em que diz: “nos EUA nunca houve golpe militar, porque lá não tem embaixada dos EUA”. Mas, os nossos países têm e elas articularam os golpes militares disseminados no continente desde os anos 60. Esse foi o primeiro ciclo. Em seguida, veio o ciclo de democratização, como ocorreu no Brasil sedimentado pela nossa Constituição cidadã de 1988 e um ciclo conservador e liberal. Um grande respiro porque era uma volta de uma democracia burguesa e delegativa que ainda predomina no Brasil, não uma democracia participativa como nós sonhamos, mas de qualquer forma muito melhor do que viver num período de ditadura.

Em seguida, vieram os governos neoliberais, messiânicos, com Collor no Brasil, Caldera na Venezuela, Fujimori no Peru e depois esses governos fracassaram. Foram todos eleitos democraticamente e fracassaram e veio um novo ciclo, que é o ciclo democrático popular, com Lula, Mujica, Chávez, Rafael Correa e Evo Morales. Nós tivemos uma ascensão desse ciclo democrático popular que não se preparou suficientemente para impedir que a direita se rearticulasse e voltasse com toda força autoritária e neofascista como é o caso dos vários governos de extrema direita que hoje ocupam países da América Latina. Onde é que nós falhamos? Na minha opinião falhamos na falta de uma educação política do povo, embora a gente tenha aberto grandes programas para melhorar a vida da população, principalmente dos mais pobres e excluídos, mas não houve um trabalho de educação política. Ou seja, a fome de pão não foi complementada pela fome de beleza que é o sentido que nós damos as nossas opções e com isso nós estamos vivendo agora um ciclo autoritário que começa felizmente a desmoronar.

Tudo indica que nós vamos enfrentar um novo ciclo democrático popular a partir de agora, daí a possibilidade da eleição do Gustavo na Colômbia e eu digo que no Brasil felizmente agora temos um Luiz no fim do túnel: Luiz Inácio Lula da Silva. O governo do Maduro na Venezuela está consolidado e já não há mais grupos de oposição significativos ou apoiados por países estrangeiros. Então realmente estou muito otimista em relação ao futuro próximo da América Latina.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/12/vamos-viver-um-novo-ciclo-democratico-popular/

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