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De onde virá o dinheiro para mudar o Brasil

Diante das chances crescentes de vitória de Lula em outubro, ressurge velha ladainha: “não haverá recursos” para a ação do Estado. Este mito esconde uma questão essencial: dinheiro emite-se – ou em favor do 0,1%, ou das maiorias…

Por: Antonio Martins

Até tu, Nelson Barbosa? O economista, ex-ministro de Dilma e integrante da equipe de assessores econômicos de Lula, fez coro, há alguns dias, com a suposta necessidade de um novo ajuste fiscal, após as eleições deste ano. A despesa com os servidores públicos, disse ele, tem de ser reduzida. Os mais ricos devem ser convocados a contribuir com o erário – “mas não de maneira imediata”… As declarações foram dadas à Folha, em matéria que também ouviu Mauro Benevides (assessor de Ciro Gomes) e Henrique Meirelles (que trabalha para João Dória). Há gradações, é claro. Meirelles, por exemplo, fala em novas privatizações, em “desinvestir as estais”, em abrir (ainda mais?) a economia. Mas o rumo é único. No terreno fiscal, a principal tarefa do próximo governo seria “equilibrar as contas”. Segundo esta lógica, a imaginação e a negociação política deveriam ficar limitadas ao espaço disponível nas planilhas macroeconômicas. As demandas sociais há muito represadas, a necessidade de enfrentar a regressão produtiva e de renovar a infraestrutura em bases sustentáveis – tudo isso deveria ser feito apenas na medida em que “couber no orçamento”.

A ladainha em favor do ajuste fiscal, que volta a ser entoada, não é uma excentricidade brasileira. Em todo o Ocidente, à medida em que se vislumbra o fim da pandemia, estão ressurgindo as pressões pela volta ao “velho normal” da ortodoxia econômica. Nos países ricos, ela se traduz na reivindicação dos mercados financeiros por juros mais altos. O princípio é o mesmo: como a inflação está em alta, seria preciso tornar o dinheiro mais caro, refrear o consumo e os investimentos e forçar a queda dos preços.

Será correto? Num artigo que Outras Palavras publica hoje, a economista norte-americana Ellen Brown aposta que não. Para ela, a lógica que preside o raciocínio acima é pobre de imaginação, prenhe de interesses e, no cenário atual, perigosamente explosiva. Seu erro essencial está em se apoiar no mito segundo o qual o volume de dinheiro de que os Estados dispõem é uma resultante do cálculo econômico – e não o produto de decisões políticas.

Ellen argumenta: a inflação atual, nos EUA não está relacionada a excesso de consumo (muito menos no Brasil, onde os preços sobem em meio à fome e ao desemprego…). A causa é oposta: escassez de produtos como petróleo, alimentos e eletrônicos, por ruptura nas cadeias produtivas, dificuldades no transporte ou especulação. Juros mais altos em nada contribuirão para eliminar estes gargalos. E podem ter efeito devastador. A dívida privada cresceu muito, no pós-pandemia. Só a das corporações norte-americanas avançou US$ 1,3 trilhão (70% do PIB do Brasil) nos últimos dois anos e meio, chegando agora a US$ 30 tri. Um aumento do custo desta dívida pode causar distúrbios graves. Será especialmente mortífero para as pequenas e médias empresas, que geram o grosso dos empregos e estão penduradas em débitos. No Brasil, onde as taxas de juros já saltaram de 2% para 10,75% ao ano, nos últimos doze meses, estes efeitos são sentidos com nitidez. No final de 2021, 76,3% das famílias estavam endividadas, segundo a Confederação Nacional do Comércio; e 25,2% tinham contas em atraso.

Para enfrentar a alta dos preços, há uma solução alternativa clara, prosegue Ellen: emitir dinheiro para ampliar a produção. Os bancos centrais poderiam fazê-lo por pelo menos de dois mecanismos conhecidos. Emprestar sem juros, via estados e municípios (nos EUA, “condados”), recursos destinados à produção. Ou, de forma ainda mais efetiva e duradoura, estimular o surgimento de bancos públicos e comunitários — que, ao contrário dos bancos privados, poderão financiar investimentos produtivos e voltados para o bem-estar das maiorias. Em seu texto, a economista descreve, em detalhes, o papel extremamente positivo que tais instituições desempenham, em países tão distintos entre si como a Alemanha e a China.

Mas… emitir dinheiro do nada? Não seria temerário e desestabilizador? O artigo de Ellen Brown lembra que, ao contrário do que sugere o senso comum, a moeda já é criada assim – porém, até o momento, quase sempre em favor do 0,1%. Desde 2008, registra a economista, os bancos centrais emitiram trilhões de dólares para irrigar os mercados financeiros, abalados pela crise das subprimes. E, além da moeda lançada seletivamente pelo Estado, há a criada pelos próprios bancos. “Em seu relatório do primeiro trimestre de 2014, o Banco da Inglaterra anotou que 97% do suprimento de dinheiro no Reino Unido havia sido criado pelos bancos, ao fazer empréstimos. Nos EUA, o número não é tão alto, mas bem mais de 90% do dinheiro também é criado pelos empréstimos bancários”, prossegue Ellen. A questão, portanto, não é saber se a moeda é criada do nada – mas em favor de que grupos sociais e de que objetivos a emissão é feita…

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A explicação nos traz de volta ao Brasil. O grande problema que surge, quando se coloca o “equilíbrio do orçamento” como pré-condição para as ações do Estado, é o apagamento das opções políticas – em especial, da opção por agir sem submissão à oligarquia financeira, a chamada “Faria Lima”. Um possível governo Lula precisará atender um vasto leque de demandas represadas – as sociais e as ligadas à reconstrução do país em novas bases. Terá na criação de moeda um importantíssimo instrumento para isso. Não poderá fazê-la, é claro, de forma “livre”. Sofrerá as pressões conservadoras do Congresso, do Judiciário e da mídia comercial. Poderá, em contrapartida, apelar para a pressão das ruas. Imagine um presidente que, diante de um impasse, vai à TV e redes sociais e diz: “Quero criar dez milhões de empregos e lançar um programa de renovação das infraestrutura brasileira. O Teto de Gastos está me impedindo”…

A crença no “equilíbrio fiscal” descarta as contradições deste jogo político. Ela pretende manter nas mãos dos bancos privados o monopólio da emissão de dinheiro. Em outras palavras, quer blindar os interesses — e, se possível, continuar ampliando os ganhos — do “pessoal da Faria Lima”. Não é à toa que o “teto de gastos” congela os investimentos em Saúde, Educação e outras áreas sociais – mas deixa totalmente livre o pagamento de juros ao 0,1%. Esta imensa “bolsa-banqueiro” sequer é submetida ao Congresso Nacional, não entra no Orçamento da União e está excluída do cálculo do “equilíbrio fiscal”. Não é bastante sintomático?

Certas épocas históricas constroem mitos para disfarçar relações sociais e de poder que seriam inaceitáveis, se vistas sem as lentes da ideologia. Entre os séculos XVI e XVII – quando a fragmentação feudal se esgotava, mas as revoluções modernas ainda estavam em gestação – emergiu no Ocidente a crença no direito divino dos reis. O teólogo francês Jacques Bossuet levou-a ao extremo, em Política tirada das Santas Escrituras. Sustentou que os soberanos reinavam por vontade direta de Deus – não mediada por qualquer entidade terrena. Acrescentou que qualquer rebelião era crime; e qualquer opinião própria, herética.

É como heresia que os defensores contemporâneos do neoliberalismo tentam rotular a criação de moeda pelos Estados, em favor das maiorias. Nenhuma Bastilha, porém, é para sempre.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/de-onde-vira-o-dinheiro-para-mudar-o-brasil/

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