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Depressão, insônia, surdez: o drama dos agricultores que vivem embaixo de parque eólico em cidade de Lula

Por: Leandro Machado e Vitor Serrano | Crédito Foto: Vitor Serrano/BBC. Dois parques eólicos têm literalmente tirado o sono de agricultores de Caetés

A energia eólica virou um grande problema em Caetés, cidade de 28 mil habitantes a 245 km do Recife, conhecida principalmente como local de nascimento de um brasileiro ilustre: o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Em 2014, dois parques de geração de energia, que totalizam 220 torres na zona rural do município no agreste de Pernambuco, foram instalados nas comunidades rurais de Sobradinho e Pau Ferro.

Eles se transformaram em um teste de resistência para um grupo de 120 famílias de pequenos agricultores que vivem bem perto delas — em alguns casos, a cerca de 150 metros — por conta do barulho alto e ininterrupto produzido pelos aerogeradores em uma área acostumada ao silêncio da roça e ao som dos animais da caatinga.

“Vocês que vêm de fora e estão filmando elas, é bonito. Mas venham morar debaixo delas para você ver o barulho por 24 horas, dia e noite. É esse zupo, zupo, zupo… Precisa a pessoa ser forte, forte de Deus, não é de carne e feijão, não”, diz Acácio Noronha, que vive em um sítio de apenas um hectare desde que nasceu, há 64 anos.

A BBC News Brasil visitou a região para entender melhor o que está acontecendo ali.

Os moradores relatam que as torres, com 120 metros de altura e hélices de 50, fomentam ansiedade, insônia e depressão, o que fez com que muitos ali começassem a tomar ansiolíticos. Também falam dos sustos causados pelas sombra das hélices, divisão de famílias e a saída forçada de suas fazendas.

As duas comunidades ficam a cerca de 10 km da réplica da casa de Dona Lindu, mãe de Lula. A casinha original, de taipa, desmoronou com a chuva. Quando Lula nasceu, Caetés ainda era um distrito de Garanhuns — por isso, o presidente costuma dizer que nasceu ali. Só em 1963, ela se emancipou.

Além das histórias antigas e orgulhosas, em Caetés fala-se bastante do petista também em tom de preocupação.

Isso porque o governo Lula anunciou para os próximos anos um investimento de R$ 50 bilhões na chamada transição energética, que pretende substituir gradualmente combustíveis fósseis por recursos renováveis e com menos impactos ambientais, como energia eólica e solar.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), também anunciou um “plano verde”, conjunto de investimentos em políticas ambientais, que também tem como um dos focos a energia eólica.

Hoje, existem 890 desses parques no Brasil, responsáveis por 13% de toda energia elétrica gerada. Até o fim do ano, a expectativa do setor é chegar a mil usinas.

O receio de ativistas e pesquisadores é que o modelo implantado em Caetés se espalhe para outras cidades que hoje são alvo do interesse das empresas.

Réplica da casa de dona Lindu, mãe de Lula, na zona rural de Caetés
CRÉDITO, VITOR SERRANO/BBC. Legenda da foto: Réplica da casa de dona Lindu, mãe de Lula, na zona rural de Caetés

Moradores de Sobradinho e Pau Ferro estão viajando a cidades do Nordeste para apresentar sua experiência e convencer agricultores a não cederem suas terras.

No caminho inverso, moradores de outros municípios fazem excursões a Caetés para ouvir os relatos.

Nos últimos meses, esse movimento de resistência às eólicas deu resultado em pelo menos um local: moradores de Borborema, na Paraíba, desistiram de ceder suas terras para a instalação de parques na cidade.

A Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), que representa as empresas do setor, reconhece os problemas de Caetés, e diz que os dois parques não são um exemplo a ser replicado, porque foram construídos sob uma regulação antiga.

As empresas responsáveis pelos parques afirmam que estão dentro das normas e que estão em contato com os moradores e tomando medidas para reduzir os impactos para a população local (veja mais detalhes abaixo).

A BBC News Brasil procurou os ministérios de Minas e Energia e Meio Ambiente para tratar do assunto, mas não obteve resposta.

‘O barulho fica no meu ouvido’

Eleitor de Lula, com uma toalha do presidente pendurada na fachada de casa, Acácio Noronha mora em três cômodos a 150 metros de quatro torres instaladas na fazenda de vizinhos, em Sobradinho.

O barulho, diz ele, aumenta ou diminui a depender da força do vento e do horário.

“Você não dorme, não tem aquele prazer de deitar e descansar. Quando cochila, acorda assustado, achando que ela vai cair. Tem hora que parece um apito, cachorro latindo, um avião que nunca decola”, conta Acácio.

Acácio é um dos moradores que começaram a tomar remédios para insônia e ansiedade. “Se estou nervoso, o barulho só piora”, diz.

Acácio Noronha dentro de carro
CRÉDITO, VITOR SERRANO/BBC. Legenda da foto: O agricultor Acácio Noronha vive a 150 metros de quatro torres, em Sobradinho

Alguns metros à frente, em uma casa também rodeada por aerogeradores, a dona de casa Edna Pereira, de 44 anos, diz tomar quatro remédios para dormir, além de outros para controlar a ansiedade e a dor de cabeça.

“Os médicos estão aumentando os miligramas. O remédio para dor de cabeça era de 25 miligramas, agora é de 100. O para ansiedade era de 10, agora é de 150. O remédio para dormir era só um, agora são quatro. E, mesmo assim, não consigo dormir”, diz Edna, segurando uma caixa onde guarda os medicamentos.

Edna costuma ir para a casa da filha, fora da comunidade, para tentar “um alívio para minha cabeça”, diz.

“Só que fica o barulho delas dentro do meu ouvido. Posso ir para onde eu for, que o barulho fica no meu ouvido. Não sai, não sai.”

Edna Pereira em frente a sua casa
CRÉDITO, VITOR SERRANO/BBC. Legenda da foto: Edna Pereira conta ter aumentado a medicação para insônia e ansiedade

‘Não estão conseguindo mais ouvir’

Os relatos sobre problemas de saúde chamou a atenção de médicos e cientistas do agreste. É o caso de Wanessa Gomes, professora de Saúde Coletiva da Universidade de Pernambuco (UPE), que tem um campus em Garanhuns.

Nos últimos meses, ela e seus orientandos da pós-graduação iniciaram uma pesquisa, além de uma residência médica, para tentar medir o impacto das torres na saúde da comunidade.

O estudo, que vai durar três anos, é financiado pela UPE e pela Fiocruz.

“Há relatos fortes de que as pessoas não estão mais conseguindo ouvir como antes. Hoje mesmo, uma senhora contou que não dialoga mais com o filho dentro de casa, porque não consegue mais escutá-lo. E não é uma mulher com idade avançada, ela tem 52 anos”, conta a professora.

“Em Caetés, as casas estão a 150 metros de uma torre eólica. É muito pouco.”

Como a tecnologia eólica da forma como conhecemos hoje é relativamente recente — tem cerca de 25 anos —, não há muitos estudos científicos sobre seus impactos.

Alguns apontam para a relação entre ruídos, insônia e perda auditiva, mas há pesquisas que divergem desse diagnóstico.

Na Holanda, por exemplo, alguns pesquisadores afirmaram que os ruídos não causam problemas de saúde mental, mas, logo depois, outro grupo de cientistas contestou essa conclusão, afirmando que há muitos indícios de prejuízos à saúde, além de apontar que a pesquisa inicial havia sido bancada por empresas de energia eólica.

A questão da distância ideal entre os aerogeradores e as casas também vem sendo discutida em vários países em um momento em que a transição energética foi apontada como uma das soluções para frear a emissão de gases de efeito estufa.

A Polônia, por exemplo, estabeleceu um mínimo de 400 metros, e a França, de 700.

No ano passado, após uma série de protestos, o Conselho de Estado da Holanda, mais alto conselho administrativo do país, suspendeu a construção de um parque eólico e solicitou mais estudos sobre possíveis consequências ambientais e na saúde mental das pessoas que vivem a cerca de 600 metros de onde as torres seriam instaladas.

Torres eólicas na comunidade de Sobradinho
CRÉDITO, VITOR SERRANO/BBC. Legenda da foto: Sobradinho é uma das comunidades onde foram instalados os parques eólicos

No Brasil, a executiva Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), reconhece os problemas de Caetés. Ela classifica os parques da cidade como “antigos, construídos antes da regulação que prevê um distanciamento de 400 metros entre torres e residências.”

“No Brasil, os grandes parques saíram a partir de 2011. E nós temos alguns que chamamos de mais antigos, que foram construídos no modelo regulatório distinto do atual”, explica Gannoum.

“É importante saber que a energia eólica é, sim, uma fonte limpa, renovável, que vai ser importante para a transição energética. Mas tem algumas coisas que nós chamamos de passado que precisam ser resolvidas.”

Os dois parques de Caetés passaram pela mão de várias empresas desde a instalação, em 2014.

Essas mudanças são comuns em um setor em franco crescimento e com fusões entre companhias, incluindo empresas estrangeiras.

Elbia Gannoum em seu escritório decorado com imagens de torres eólicas
CRÉDITO, VITOR SERRANO/BBC. Legenda da foto: Elbia Gannoum, da Abeeólica, afirma que parques de Caetés são ‘antigos’

Atualmente, os parques de Pau Ferro e Sobradinho pertencem às empresas Echoenergia e AES Brasil.

A primeira, que assumiu Pau Ferro em 2017, afirma que, após ouvir as queixas, realizou estudos na região.

Diz que a “pressão sonora” das torres é de aproximadamente 40 decibéis (equivalente ao barulho de um freezer). Segundo a empresa, isso está dentro das normas previstas para uma zona predominantemente residencial.

Alguns moradores disseram à reportagem, no entanto, que fizeram medições próprias que chegaram a mais de 100 decibéis e que a intensidade do ruído varia ao longo do dia e de acordo com o vento.

A Echoenergia também diz ter investido R$ 25 milhões em melhorias de estrutura e acústica das casas de 129 famílias, mas que um grupo de moradores não aceitou as reformas.

Já a AES Brasil, que assumiu Sobradinho em novembro de 2022, afirma que “vem mantendo diálogo permanente com os representantes da comunidade em busca de uma solução que priorize o bem-estar e a segurança de todos”.

Terra dividida

A zona rural de Caetés é dividida em pequenas propriedades na caatinga.

Por volta de 2012, as empresas procuraram agricultores que aceitassem arrendar suas terras para a instalação dos aerogeradores. Esse modelo é o mais comum no ramo.

Quem aceitou passou a receber 1,5% do valor da energia gerada em cada torre, cerca de R$ 2 mil mensais.

Essas pessoas, que melhoraram consideravelmente de renda com isso, saíram de suas terras e foram viver na zona urbana.

A reportagem tentou conversar com algumas delas, mas o termo assinado com as empresas exige “confidencialidade” sobre o assunto.

A BBC News Brasil teve acesso a dois contratos oferecidos a agricultores por duas empresas diferentes em cidades do Nordeste.

Além de autorizar a transferência do terreno para outra empresa sem a necessidade do aval do proprietário, um dos documentos afirma que o contrato tem duração de 49 anos e informa que só pode ser rescindido pelo agricultor em “comum acordo” com a companhia.

agricultor trabalhando com torres ao fundo
CRÉDITO, VITOR SERRANO/BBC. Legenda da foto: A zona rural de Caetés é dividida em pequenas propriedades de terra

Por outro lado, as empresas têm o direito de quebrar o contrato a qualquer momento, sem custos, se o imóvel tiver algum problema que atrapalhe a produção.

Outro documento afirma que, caso o proprietário descumpra obrigações que tenham força para rescindir o contrato, como o pagamento de taxas e impostos, a empresa pode cobrar uma multa de 30 vezes o valor recebido por ano pela energia gerada.

Ou seja, essa multa pode chegar a milhões de reais e ser superior ao valor do próprio imóvel.

Para João do Valle, ativista da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e diretor do documentário Vento Agreste, o modelo de Caetés é um “latifúndio eólico, no qual as empresas não compram a terra, mas tomam posse dela por décadas.”

“A gente não é contra a energia eólica. E, sim, contra esse padrão trazido ao Nordeste, porque ele se baseia na expulsão de agricultores, violência contra a natureza, adoecimento, divisão de famílias e comunidades”, diz João, que junto à CPT e ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tem organizado excursões de camponeses a Caetés.

Já Élbia Gannoum, da Abeeólica, reconhece as reclamações sobre os contratos, e diz que o modelo precisa ser revisto.

“Um parque tem uma estimativa de durar 25 anos, então é normal que os contratos sejam longos. Mas, de fato, existem cláusulas que não fazem sentido para um pequeno agricultor que tem uma ou duas torres, porque ele fica muito tempo preso ao contrato. Estamos discutindo um modelo que seja melhor para os dois lados”, diz.

O prefeito de Caetés, Nivaldo Martins (Republicanos), afirma que, no geral, a chegada das eólicas levou mais benefícios do que problemas à cidade.

“Tem famílias que têm seis torres… Vamos dizer que ela receba R$ 2 mil por cada uma. São R$ 12 mil por mês”, diz. “Os parques tiveram um impacto importante na renda da cidade. As pessoas pegaram esse dinheiro e fizeram construções aqui, ou compraram casas prontas e vieram viver na zona urbana.”

O prefeito, cujo gabinete é decorado com imagens de torres eólicas, afirma que as empresas “não explicaram direito” aos moradores quais seriam os impactos na saúde e que a Secretaria da Saúde do município tem prestado atendimento às comunidades.

Também diz que a prefeitura não teve participação nas negociações com as empresas nem tem direito a royalties pela energia gerada — recebe apenas impostos indiretos.

Prefeito Nivaldo Martins
CRÉDITO, VITOR SERRANO/BBC. Legenda da foto: O prefeito de Caetés, Nivaldo Martins, diz que eólicas são benéficas à cidade

 

Saiba mais em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cglyg8np3mno

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