Artistas, autores e cineastas, originários de diversas etnias, conquistam destaque inédito. Apropriam-se das técnicas “do branco” para confrontar a violência colonial. Um breve panorama mostra a potência criativa deste momento singular na cultura brasileira
Por: Alcida Rita Ramos | Imagem: A queda do céu e a mãe de todas as lutas (2022), de Daiara Tukano; a figuração dialoga com a pietà renascentista.
O que leva um grupo de pessoas, uma coletividade, a congregar esforços e talentos para produzir impactos no mundo ao redor? Será condição necessária viver as agruras do purgatório para emergir no paraíso? Será que são os gigantescos desarranjos sociais, como na Europa pós-medieval, a mola propulsora sem a qual não surgirá uma nova era? Ou, como no Sul dos Estados Unidos, é preciso amargar uma prolongada escravidão para produzir o extraordinário movimento cultural conhecido como Harlem Renaissance?
Trazer essa discussão para o contexto da arte indígena contemporânea pode parecer um tanto descabido, mas nos ajuda a esclarecer alguns aspectos do movimento cultural a que ora assistimos, que nos encanta, mas que mal compreendemos.
O que há – se é que há – em comum entre a Renascença do Harlem no início do século XX e o que chamo de Renascença Indígena no Brasil atual? Primeiro, temos coletividades etnicamente diferenciadas do resto da população nacional – negros americanos e indígenas brasileiros. Segundo, ambos os momentos têm na mobilidade espacial o estopim para atividades criativas. Vale a pena puxar alguns desses fios históricos.
No admirável livro The Warmth of Other Suns, Isabel Wilkerson (2011) acompanha a saga daqueles migrantes no que chama de “história épica da Grande Migração da América”, o êxodo espetacular de boa parte da população negra dos estados do Sul para o Norte, depois da derrota dos confederados e o fim da escravidão negra em 1865. Entre fracassos e êxitos, sobreviventes negros do cataclisma que foi a guerra de Secessão americana, eventualmente, estabeleceram-se na periferia de Manhattan e criaram uma das mais impressionantes efervescências culturais daquele país. “O fluxo de migrantes negros logo rompeu os últimos diques raciais no Harlem” (Wilkerson, 2011: 250) que, nos anos 1920, deram lugar à famosa Renascença que congregou pintores, escritores, músicos e atletas que fizeram a fama da nata cultural dos Estados Unidos e projetaram a Negritude no resto do mundo. A Grande Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mundial mutilaram esse portentoso movimento, mas não destruíram seu legado duradouro, como atestam nomes como Louis Armstrong, W.E.B. Du Bois, Zora Neale Hurston, entre muitos outros.
Assim como os artistas do Harlem nasceram do movimento de gente pelo país, também no Brasil a explosão artística que agora assistimos protagonizada por indígenas resulta da mobilidade de pessoas para fora das aldeias. O movimento no espaço leva ao movimento de sensibilidades estéticas, como bem expressou o saudoso artista plástico Jaider Esbell.
Minhas andanças por tantos cantos talvez tivessem me preparado para enxergar e sentir aquilo que a colonização tirara dos nossos povos quando aqui chegaram, a alma maior. Eu agora posso entender melhor o sentido desses encontros que ocorrem sempre, desde sempre, mas que, pela urgência da derrocada humanitária sobre a ecologia, é preciso que nos exibamos em simultâneo. É preciso falar, escrever, performar, atuar, enfeitiçar, pois, em matéria de arte para nós, povos indígenas, a obra não basta (Esbell, 2021, p. 11).
Mas, ao contrário dos artistas do Harlem, o movimento dos indígenas brasileiros para fora das aldeias não foi feito em massa, embora a motivação não seja tão diferente. Aqui, agora, como lá, então, há um componente de expulsão, aqui expresso na invasão das terras ancestrais com o consequente empobrecimento da qualidade de vida; lá, resultado da quebra dos grilhões da escravidão, anunciando um futuro possível sob “o calor de outros sóis”.
Não que não houvesse arte indígena antes desta Renascença. Sem entrar pela arqueologia à busca de exemplos, pensemos na estética indígena mundial nos últimos tempos: as manifestações gráficas do Dreamtime dos Aborígenes australianos, as miniaturas de marfim dos Inuit, ou os totens dos Kwakiutl e seus vizinhos canadenses. Mais perto de nós, temos as joias que os Waurá do Alto Xingu produzem com palha, barro e madeira, os figurinos Karajá, os tecidos Huni Kuin, a plumária Urubu-Kaapor, Kayapó ou Bororo, a pintura corporal Kadiweu, os ubíquos bancos zoomorfos… Muito acertadamente, diz o antropólogo Pedro Cesarino (2021: 29), “ao tomar para si as técnicas introduzidas pelo invasor não indígena, artistas diversos não apenas traduzem para o papel esquemas gráficos e narrativos já praticados em outras mídias como também inauguram um novo gênero capaz de subverter, pela beleza e pelo sentido, a violência do colonizador”.
Sair de casa e espraiar-se pelo mundo expande a consciência de que é possível ampliar as possibilidades estéticas. No entanto, é fundamental manter os vínculos com a comunidade de origem, pois é ela a fonte de inspiração que propicia combinar o tradicional com o inusitado, o estranho, aquilo que fustiga as imaginações. Nas artes plásticas, além do inesquecível Jaider Esbell, filho inspirado do povo Macuxi de Roraima, uma pletora de artistas bebendo inspiração dentro e fora de casa compõem um acervo estético invejável: Carmézia Emiliano, também Macuxi, Daiara Tukano, Denilson Baniwa, Isabel Maxakali, Ailan Pankararu, Joseca Yanomami, Yaka Huni Kuin, Rivaldo Tapyrapé… e a lista continua. Catálogos de exposições dentro e fora do Brasil estão repletos de obras indígenas que nos arrebatam os sentidos. À tradição da palha, do barro, da madeira e das plumas esses artistas adicionaram a tela, as tintas, o acrílico com naturalidade, assim como na escola adotaram diretamente o computador sem percorrer os longos e lentos passos dos nossos ancestrais que, laboriosamente, aprenderam – e esqueceram – o que é escrever a carvão, a pena de ganso, a caneta tinteiro, a esferográfica, a máquina de escrever manual, depois elétrica para, por fim, chegarem à era digital. Com a perspicácia de um aprendizado que já leva mais de meio milênio, os indígenas cortaram todo o tortuoso caminho dos brancos pela escrita sem perder uma vírgula de sua integridade mental.
Enquanto os antepassados produziam arte para consumo interno, sem fazer concessões ao mundo exterior, esses novos artistas plásticos dirigem seus talentos ao universo artístico mais amplo, incluindo o mercado de arte. Mostram o imaginário indígena, mas em imagens que fazem sentido estético para o observador forasteiro. Utilizam recursos técnicos e visuais com grande sensibilidade e perícia, o que os iguala aos seus congêneres não indígenas e, ao mesmo tempo, traduzem esteticamente aspectos que, por outros meios, poderiam passar despercebidos ou ser inteligíveis. Com apelo ao belo, o observador admira a obra, mesmo que não alcance o seu significado profundo ou os temas explorados, muitas vezes, advindos de regiões recônditas, inatingíveis de suas respectivas culturas.
Esse aspecto de fazer arte para fora também o encontramos em vários outros contextos da produção indígena. Exemplifico com um parêntesis. Quando Bruce Albert e eu concebemos o conteúdo do que viria a ser Pacificando o Branco, tínhamos em mente contrabalançar nossa grande frustração por estarmos naquele momento proibidos de entrar nas áreas indígenas devido à recrudescência do regime militar. Era o fim dos anos 70, início dos 80. Como recorte geográfico, selecionamos, justamente, a região à qual não podíamos voltar: o norte da Amazônia brasileira alvo de projetos militares, em especial, a faixa de fronteira afetada pela construção da rodovia Perimetral Norte. Era como se, simbolicamente, voltássemos à área. O recorte temático foi, apropriadamente, o impacto do contato forçado sobre os vários povos indígenas daquela enorme faixa de fronteira. O resultado é uma série de textos que exploram os mecanismos de defesa daqueles povos face a agressões que só podiam combater com seus próprios recursos, como, por exemplo, xamanismo, rituais de cura etc.
Por aquela época, organizei um seminário na Universidade de Brasília intitulado Do tacape ao vídeo. O projeto Vídeo nas Aldeias de Vincent Carelli estava a todo vapor e eram frequentes as imagens de jovens Kayapó de câmera em punho, filmando dentro e fora de suas aldeias. Minha ideia ao organizar aquele evento era, precisamente, contrabalançar o efeito Pacificando. Enquanto o livro expunha mecanismos e estratégias de defesa para uso interno, ou seja, para neutralizar os efeitos deletérios do contato e abrandar medos e iras dentro das próprias comunidades longe da vista de forasteiros, o seminário, ao contrário, explorava, justamente, as ações indígenas diretamente arremessadas aos brancos, os genéricos agressores dos índios nos embates interétnicos.
Com este parêntesis quero dizer que, como nas obras de arte, é possível identificar, na ética e estética tradicionais, posturas e ações que interessam apenas aos indígenas, enquanto outras, na ética e estética contemporâneas, têm o propósito de impactar o mundo exterior. Geralmente, não se misturam umas com as outras, mesmo quando o produto da arte tradicional entra no mercado, com frequência chamado desdenhosamente de “artesanato”.
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