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Como avança o roubo do território indígena

Relatório do CIMI revela: atos e declarações do presidente estimulam invasão recorde de terras dos povos originários. E mais: Bolsonaro quer mais um juiz antidireitos no STF; o papel dos “superespalhadores” na difusão da covid

Por Maíra Mathias e Raquel Torres

VIOLÊNCIA EM DISPARADA

Nunca houve dúvidas de que as invasões e os danos às comunidades indígenas aumentariam no governo Jair Bolsonaro. O relatório anual do Cimi, o Conselho Indigenista Missionário, constata o tamanho desse crescimento: a ocorrência de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” mais do que dobrou em 2019, em comparação com 2018. Foi um aumento de 135%. No ano passado houve 256 registros em pelo menos 151 terras indígenas espalhadas por 23 estados. Em 2018, haviam sido 109. Os imensos incêndios florestais, é claro, precisam ser lidos nesse contexto.

E esse é só um dos três tipos de ‘violência contra o patrimônio’ relatadas pelo Cimi. Houve também 35 conflitos relativos a direitos territoriais e nada menos que 829 registros de omissão e morosidade na regularização de terras. Pois é: Bolsonaro não apenas vem cumprindo sua promessa de não demarcar nenhum centímetro de terra como também está emperrando os processos de regularização  já em curso. No primeiro semestre de 2019, o governo federal devolveu 27 processos à Funai para que fossem revistos. “Esses dados explicitam uma tragédia sem precedentes no país: as terras indígenas estão sendo invadidas de modo ostensivo e pulverizado de Norte a Sul. Em alguns episódios descritos no relatório, os próprios invasores mencionavam o nome do presidente da República, evidenciando que suas ações criminosas são incentivadas por aquele que deveria cumprir sua obrigação constitucional de proteger os territórios indígenas, patrimônio da União”, narra o documento.

O relatório analisa ao todo 19 categorias de violência. Houve crescimento em 16 delas, incluindo na morte de crianças de zero e cinco anos por falta de assistência. Esse número subiu de 591 casos para 825 – e o dado ainda é parcial, sujeito a atualizações. A maior parte dessas mortes aconteceram no Amazonas, em Roraima e no Mato Grosso do Sul. “As doenças são, em grande maioria, tratáveis. O que acontece é que quando as comunidades sofrem restrições, as crianças são as mais afetadas. Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, quando o governo interrompe o fornecimento de cestas básicas, em 15 dias elas estão no pronto-socorro desnutridas. Não há equipamento, equipe ou políticas de saúde no Amazonas. É inadmissível”, diz a antropóloga Lucia Helena Rangel, organizadora do relatório, n’O Globo. A alta também tem uma relação muito provável com o desmonte do programa Mais Médicos, que acabou deixando comunidades inteiras desassistidas.. 

Quando se olha para a violência praticada contra a pessoa indígena, os registros passaram de 110 ocorrências para 276, o que dá um crescimento de 150%. O número de assassinatos caiu levemente, de 135 para 113. Mas as ameaças de morte subiram: foram de oito para 33. Houve ainda 34 ameaças variadas, 24 tentativas de assassinato, 20 homicídios culposos, 16 atos de racismo e discriminação étnico cultural, 13 lesões corporais dolosas, 13 caos de abuso de poder e dez violências sexuais. O número de suicídios – cujas taxas entre indígenas já são mais altas do que no resto da população –  foi de 101 para 133.

Em tempo: finalmente, Bolsonaro editou ontem uma medida provisória com critérios para o estabelecimento de barrerias sanitárias para proteger áreas indígenas da covid-19. Ela estabelece que as barreiras serão “compostas por servidores públicos federais, prioritariamente, ou por militares” e que a “Funai será responsável pelo planejamento e pela operacionalização das ações de controle”.

EM SINTONIA

A indicação do próximo ministro do Supremo pode ‘ter o dedo’ de Flávio Bolsonaro. O cotado da vez é o desembargador piauiense Kassio Nunes, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), conhecido por decidir causas contrárias ao meio ambiente, à saúde e às populações tradicionais. 

No ano passado, ele suspendeu a liminar que obrigava a desintrusão da terra indígena Jarudore, em Mato Grosso. O local foi reconhecido como território dos Bororo num longínquo 1912, mas hoje tem mais de 90% da sua área ocupada por não indígenas. Segundo o desembargador, retirar os 2,5 mil intrusos causaria “vultosos prejuízos” à ordem, à segurança e à economia da cidade.

Mas essa não foi a única decisão desfavorável aos povos indígenas. Em 2014, Nunes decidiu em favor da Funai que arrastava o processo de reconhecimento do território Sawré Muybu, ocupado pelo povo Munduruku, no Pará. Isso porque, como reconheceu a própria presidente da Fundação na época, a demarcação impediria o desenvolvimento da hidrelétrica de Tapajós, uma prioridade para o governo Dilma. O desembargador considerou que mesmo que a incerteza sobre a demarcação estivesse provocando conflitos com madeireiros e garimpeiros, a delimitação seria ainda pior… Até hoje, o território não foi demarcado, apesar da papelada que embasa o procedimento estar pronta há sete anos.  

Em 2018, o desembargador derrubou outra liminar, desta vez voltando atrás na suspensão do registro de produtos à base de glifosato e outros agrotóxicos sobre os quais pesam evidências científicas de que sejam cancerígenas. Mas Nunes ficou conhecido por liberar, a pedido da Advocacia Geral da União, a compra de vinhos e lagostas em uma licitação que atendia o STF. Sua justificativa foi a de que os caros produtos seriam oferecidos “às mais graduadas autoridades nacionais e estrangeiras”.  

Na terça, ele esteve com Bolsonaro no Palácio do Planalto para uma conversa, segundo revelou o colunista Lauro Jardim. No mesmo dia, o presidente levou Nunes a tiracolo para uma conversa ao vivo com dois ministros do Supremo – Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Ambos sinalizaram positivamente. Mas a indicação parece não ser do agrado do atual presidente da Corte, Luiz Fux. De acordo com Mônica Bergamo, ele tem uma preferência pessoal: Luís Felipe Salomão, do STJ. Ao Valor, um auxiliar do presidente disse “é prematuro apostar todas as fichas” em Nunes, mesmo que Bolsonaro pareça, por ora, ter batido o martelo. A aposentadoria de Celso de Mello está marcada para o próximo dia 13.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasaude/violenciaemdisparadacontraindigenas/

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