Uma resenha crítica do livro Contra-História do Liberalismo, do filósofo marxista Domenico Losurdo.
Por Nick Serpe / Tradução Everton Lourenço
Domenico Losurdo compõe sua Contra-História do Liberalismo com a ambiciosa tarefa de redefinir uma tradição política de centenas de anos. Ele não gasta muito tempo explorando a definição usual de liberalismo – um sistema de pensamento e organização política baseado na liberdade individual – e, em vez disso, traz à luz aspectos que “até agora têm sido ampla e injustamente ignorados”. Losurdo concentra-se nas cláusulas de exclusão presentes nas ideias e nas sociedades liberais englobando escravos, trabalhadores, os pobres e os povos coloniais. Ele não pretende apenas corrigir um registro hagiográfico demais para o seu gosto, mas também dizer algo profundo sobre os paradoxos no cerne do liberalismo.
O livro debate com pensadores liberais de maior e menor importância, mas não é nitidamente uma história intelectual. Contra o “pensamento liberal em sua pureza abstrata”, Losurdo chama a atenção para como os teóricos liberais, especialmente quando escreveram sobre pessoas a quem foi negada a liberdade, justificavam ou atenuavam aspectos incômodos das sociedades que propagandeavam: principalmente a Grã-Bretanha após a Revolução Gloriosa e os Estados Unidos, mas também Holanda, França (em certos momentos), América Latina pós-revolucionária e a Alemanha que emergiu na segunda metade do século XIX. Esses bastiões liberais são responsáveis por inúmeras políticas de repressão e até barbárie, que hoje seriam chamadas de “iliberais” sem hesitação, mas que na época foram defendidas por uma profusão de pensadores liberais.
Uma das controvérsias centrais de Losurdo, no entanto, diz que instituições como a escravidão racial, o colonialismo e hierarquias de classe codificadas nas leis não apenas encontravam apologistas liberais muito bem dispostos, mas que eram expressões da própria sociedade liberal. Na abertura de seu livro, ele reivindica para o liberalismo a figura de John C. Calhoun, teórico e Estadista do sul escravocrata nos EUA. Calhoun investia contra os “fanáticos” abolicionistas e elogiava a harmonização, o compromisso; ele se declarava um oponente do “governo absoluto” e acreditava firmemente no constitucionalismo. Ele defendia a liberdade – mas apenas para alguns, e ao preço de uma das instituições menos livres e mais brutais da história humana.
Colocar Calhoun no início do livro é útil para alguns argumentos que Losurdo deseja construir. O primeiro é que o liberalismo representaria a revolta da sociedade civil contra o poder central e que, portanto, muitas vezes levou a novas e mais severas formas de poder fora do estado – o poder dos proprietários das plantations, de corporações coloniais e de capitalistas urbanos. Em segundo lugar, a crueldade dessas novas formas de poder derivaria em grande parte da posição fundamental dos direitos de propriedade no interior do liberalismo – incluindo o direito à propriedade humana. Terceiro, as restrições à filiação na “comunidade dos livres” tornariam a liberdade ainda mais preciosa para seus possuidores, produzindo uma casta de homens livres ansiosos por manter “no seu lugar” as castas mais baixas (cuja emancipação completa levaria a reivindicações de longo alcance contra a propriedade privada). A eventual emancipação dos não proprietários, por sua vez, dependeria de uma “linha nítida de demarcação entre brancos, por um lado, e negros e peles-vermelhas, por outro”.
Essa é uma teoria bastante sofisticada, mas a inclusão de Calhoun no panteão liberal não pode deixar de levantar algumas sobrancelhas de desconfiança. Seus argumentos contra o fanatismo e os “governos absolutos” e a favor do “compromisso” e do constitucionalismo o tornam um liberal ou um conservador que sabia mobilizar a linguagem da liberdade em benefício de sua classe? Em alguns momentos, Losurdo parece abraçar a ideia de que não muita diferença entre os dois, escrevendo que a “celebração da liberdade” do liberalismo estava “vinculada à realidade de um poder absoluto sem precedentes” e que ela “pode ser claramente interpretada como uma ideologia”. Porém, à medida que o livro avança, fica explícito que ele não enxerga todos os teóricos liberais como cúmplices em uma farsa em nome das configurações existentes de poder e riqueza.
Ao mesmo tempo, Losurdo se opõe à ideia de que alguma dialética interna da liberdade teria levado os liberais a enfrentar com mais honestidade as exclusões do liberalismo inicial. Em vez disso, ele aponta para os principais conflitos dentro da comunidade dos livres – durante a Revolução Americana, as Revoluções Francesa e Haitiana, a Guerra Civil Americana e a Primeira Guerra Mundial – como momentos de constrangimento e desmistificação mútuos, quando aqueles em lados opostos em torno de uma questão política expunham as formas de falta de liberdade que seus adversários institucionalizavam. Os revolucionários americanos, por exemplo, proclamavam que sofriam sob o jugo da “escravidão política”. Os britânicos respondiam “ironizando sobre a bandeira da liberdade hasteada por proprietários de escravos” e apontando para o tratamento brutal dispensado aos nativos americanos. Tornou-se mais complicado para os liberais – embora não impossível – continuar justificando a escravidão após essas polêmicas. No rescaldo da Guerra Civil estadunidense, eles abandonaram por completo essa linha de argumentação, embora ainda não abandonassem o princípio da democracia com base racial. Como resultado desses conflitos sangrentos, o liberalismo absorveu ideias mais inclusivas e até mais igualitárias, demonstrando a “flexibilidade” que é um dos poucos méritos que Losurdo atribui à essa tradição.
Embora em alguns casos, como na Revolução Americana, os lados opostos em um conflito fossem compostos por liberais com interesses concorrentes, em outros casos Losurdo encontra uma dinâmica diferente em ação. Durante a Revolução Francesa, argumenta ele, pessoas antes inspiradas pela Revolução Americana ficaram tristes porque sua promessa de liberdade sucumbiu a um Estado racial inveterado. Em sua desilusão, elas deixaram de analisar as sociedades liberais apenas a partir da posição da comunidade dos livres. A palavra que Losurdo usa para o liberalismo desiludido é “radicalismo”, uma tradição cujos proponentes reconheciam que a liberdade em relação ao Estado não é igual à liberdade em geral, pelo menos para a vasta maioria. De acordo com Losurdo, mais do que qualquer compromisso político específico, o radicalismo implicou em uma mudança da perspectiva focada naqueles que desfrutavam da liberdade para uma perspectiva voltada àqueles que não desfrutavam dela e em uma disposição para permitir que estes últimos assumissem a “luta pelo reconhecimento” em suas próprias mãos.
A perspectiva radical desmente a divisão entre aquilo que Benjamin Constant, na esteira da Revolução Francesa, chamou de “liberdade dos antigos” (autogoverno) e “liberdade dos modernos” (o direito à vida privada e à propriedade privada, livre da interferência do Estado). Os defensores liberais do status quo acima de tudo elogiavam a liberdade moderna, ou (nas palavras de Isaiah Berlin) a “liberdade negativa“, especialmente quando se tratava de redistribuição de riqueza. A maioria das pessoas, é claro, não tinha propriedade para desfrutar, em grande parte porque lhes fora negada a liberdade “positiva” de participar do governo de suas sociedades. Mais do que simplesmente privar os pobres dessa participação, no entanto, os liberais muitas vezes demonstraram uma tendência, tanto na teoria quanto na prática, “de governar a existência das classes populares até nos menores detalhes” – por meio da frequência obrigatória à igreja, de internamento de mendigos em casas de correção e de restrições à reunião, entre outros regulamentos. Tanto a liberdade positiva quanto a negativa estavam fora de seu alcance.
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2020/09/as-exclusoes-e-expansoes-do-liberalismo/
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