Em entrevista, José de Sousa Miguel Lopes (UEMG) analisa o papel da Educação na construção da identidade nacional moçambicana, durante primeiros anos de Frelimo
Por Tatiana Carlotti
Em 1975, quando Moçambique conquistou sua independência de Portugal, José de Sousa Miguel Lopes, então professor do ensino primário, foi convidado a integrar o Ministério da Educação do novo governo comandando pela Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo.
“Com a independência do país, a esmagadora maioria dos portugueses, que eram as pessoas mais qualificadas em vários campos da sociedade, abandonou Moçambique. Os poucos que ficaram tiveram que assumir tarefas de grande responsabilidade, para as quais, inclusive, não estavam preparados. Foi o meu caso”, conta o atual professor de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).Ao longo de dez anos, ele teve a oportunidade de atuar na construção da Educação em Moçambique. Nos cinco primeiros, à frente da Comissão de Formação de Quadros do Ministério da Educação, voltada à formação e reciclagem do ensino primário em todo país.
Ali, ele conheceu vários quadros que tinham participado da luta de libertação nacional, e outros tantos das lutas revolucionárias do período, que afluíam exilados de outras ditaduras para Moçambique, recém liberta do colonialismo. “Todos irmanados na gigantesca tarefa de vencer o subdesenvolvimento, na luta pela construção de uma nova sociedade”.
José de Sousa se tornou Diretor Provincial de Educação e Cultura de Maputo, o equivalente a Secretário Estadual de Educação por aqui, foi quando se intensificaram as agressões do apartheid em Maputo, que faz fronteira com a África do Sul. “Centenas de cidadãos foram mortos e outros raptados para a África do Sul onde, após lhes ser feita uma lavagem no cérebro, eram treinados e infiltrados em Moçambique como bandidos armados. Não foi fácil trabalhar em zonas de guerra”, lembra.
Retornando ao Ministério da Educação, ele assumiu a Direção Nacional de Formação de Quadros da Educação (DNFQE), e conheceu a experiência educacional de outros países como a Tanzânia, o Zimbabué, a República Democrática Alemã e a União Soviética. Frente a necessidade de compreender a própria práxis, José de Sousa veio ao Brasil estudar Pedagogia. É hoje professor na UEMG.
Em Formação de Professores Primários e Identidade Nacional: Moçambique em tempos de mudança (Appris, 2020), ele conta e analisa, a partir da prática e da teoria, o papel dos professores primários na construção da identidade nacional durante os primeiros anos de independência naquele país.
Confira a nossa conversa.
Professor, o sr. acompanhou o calor da hora daquele Moçambique, em plena construção de um governo próprio. De lá para cá, como você sintetizaria esses quase cinquenta anos de Independência?
José de Sousa Miguel Lopes – Moçambique vivenciou, nas últimas quatro décadas, um sucessivo processo de rupturas político-sociais de desigual intensidade, é certo, mas que se constituíram em outros tantos desafios à capacidade criativa e à busca de soluções para os complexos problemas que emergiram após cada ruptura, tanto nos campos político, econômico e social, quanto nos campos educacional e cultural.O ponto de partida da história recente é 1962, quando da criação da Frelimo (1a ruptura), que viria a desencadear uma luta armada de libertação nacional contra o colonialismo português, até a independência do país, em 25 de junho de 1975 (2a ruptura). Na primeira década de independência, Moçambique encetou um projeto de construção de caráter socialista que, com o posterior alastramento da guerra civil e a deterioração da economia, acabou sendo sufocado.
A gravidade da situação acabou levando o país a adotar a filosofia neoliberal, aderindo em 1985 ao FMI e ao Banco Mundial como forma de suster a deterioração econômica (3a ruptura). O término da guerra e a abertura ao multipartidarismo culminaram com as primeiras eleições gerais multipartidárias de Moçambique, em outubro de 1994 (4a ruptura). Um novo quadro de pós-guerra se desenha, no qual o aprofundamento da cidadania e do aprendizado democrático constituem novos desafios para a Frelimo e para a sociedade moçambicana como um todo.
Hoje, a crise econômica que Moçambique vem atravessando, em resultado dos erros na concepção e direção da estratégia econômica, da guerra de desestabilização e da conjuntura econômica internacional desfavorável, tem aprofundado sua dependência por donativos e empréstimos estrangeiros para financiar as importações essenciais, e até o próprio orçamento e funcionamento do Estado.
Nessa situação, não é fácil salvaguardar a soberania nacional, tão necessária à tomada de decisão sobre as mudanças ou os reajustamentos econômicos e políticos em curso, correndo-se assim, um grande risco de se perder, com a adoção de novas políticas econômicas e financeiras, o que tantas vidas custaram na luta pela independência nacional.
Seu livro traz as reflexões sobre um processo de construção de uma identidade nacional, em contexto pós-revolucionário. Queria que você falasse um pouco disso e, em particular, do papel desses professores neste processo.
José de Sousa – O caráter eminentemente político do projeto nacional em curso em Moçambique detecta-se em primeiro lugar, pela artificialidade das fronteiras territoriais em que se desenvolve, definidas na Conferência de Berlim em 1884/85 e ratificadas pela Organização de Unidade Africana em 1964. Assim, surge uma realidade a necessitar de um grau relativamente elevado de coesão.
Construir tal coesão vai representar um desafio para o novo Estado que então se constituiu. Além disso, o Estado moçambicano se deparou com uma situação limite em termos político-sociais, a eclosão e alastramento da guerra desencadeada pelo regime do apartheid.
Trata-se, por um lado, de resgatar um passado que o colonizador tentou por todos os meios destruir e, por outro lado, redescobrir esse passado, mas avaliando-o segundo os parâmetros da história do povo moçambicano.
Pensar em identidade nacional, sobretudo num país como Moçambique, com mais de vinte línguas e culturas e com os imensos divisionismos herdados de 500 anos de dominação colonial exige, necessariamente, a criação de um fator de união, para que cada indivíduo se sinta moçambicano, independentemente de sua região, de sua língua, de sua religião de seus hábitos e tradições culturais.
Daí o papel do professor primário, que é de extrema importância, e não apenas em Moçambique, mas em qualquer país do mundo. Eu foquei minha pesquisa nele, não apenas por sua importância para a formação integral do indivíduo, mas pelo papel que ele desempenha em inculcar nos seus alunos o sentimento de identidade nacional.
Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Leituras/Educacao-e-identidade-nacional-o-caso-de-Mocambique/58/50558
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