Maior inundação da história do Estado em 119 anos afeta comunidades controladas pelo tráfico de drogas, onde a chegada de doações é dificultada. Onda de violência levou vacinação a ser suspensa
Steffanie Schmidt
Leyna Paula da Costa Rego, de 35 anos, está sem banheiro desde que o rio Negro encheu e alagou o quintal onde ficava o cômodo. A casa de dois compartimentos onde mora com as filhas de 15, 13 e 11 anos ainda está a salvo. Ela, que está com covid-19, diagnosticada por meio do exame RT-PCR, usa o banheiro da mãe, que mora na mesma casa, dividida para acomodar as duas famílias, no bairro Colônia Antônio Aleixo, zona Leste de Manaus.
“Choveu esta semana e fiquei com medo que chegasse aqui. Alagou o banheiro da minha vizinha e aí eles ‘pegaram o beco’. Estão na casa de parentes. A Defesa Civil veio vai fazer um mês. Viram a situação do meu banheiro, marcaram a casa, fizeram nossa inscrição para receber auxílio, mas até agora nada”, conta Leyna que trabalhava por diária para uma empresa de reciclagem, mas está desempregada desde o início da pandemia em 2020.
O auxílio-enchente de 300 reais prometido pelo Governo do Estado está previsto para alcançar 100.000 pessoas prejudicadas pela cheia que já atinge 450.000. A Prefeitura conta com auxílio-aluguel para os que saíram de casa, no valor de 300 reais, e o auxílio Operação Cheia 2021, no valor de 200 reais. Todos são pagos por dois meses, período em que o rio começa a descer.
Esta é a maior cheia da história do Amazonas em 119 anos de medição, em meio a uma pandemia e ao prenúncio de nova alta de contaminações por covid-19, meses após uma crise levar doentes pela doença à morte por conta da falta de oxigênio. Na quarta-feira, às vésperas do depoimento marcado na CPI da Pandemia, suspenso por um habeas corpus do Supremo Tribunal Federal (STF), o governador Wilson Lima (PSC) anunciou que pretende acelerar a imunização no Estado e vacinar toda a população acima dos 40 anos até o final de semana.
Boa parte das comunidades alagadas em Manaus é controlada pelo tráfico de drogas e, até mesmo para fazer a ajuda com doação de alimentos chegar, é preciso estar acompanhado de alguém da comunidade. A capilaridade do crime organizado no Estado ficou evidente na madrugada do domingo passado (6), quando Manaus e outras seis cidades do interior do Amazonas —Iranduba, Careiro Castanho, Manacapuru, Carauari, Caapiranga e Rio Preto da Eva— sofreram ataques incendiários atribuídos ao Comando Vermelho, que continuaram até a manhã de segunda-feira, mesmo após o reforço do policiamento nas ruas.
Aproximadamente 30 veículos foram queimados, entre eles 15 ônibus, carros que estavam no estacionamento da 13ª Companhia Interativa Comunitária, uma viatura da PM, uma viatura da Polícia Civil, além de van, micro-ônibus, tratores e uma ambulância do Samu. Sete vias públicas foram incendiadas bem como oito prédios públicos —incluindo uma praça reformada e inaugurada pela Prefeitura na semana anterior.
Agências de bancos como Caixa Econômica, Banco do Brasil, Santander, Bradesco e Basa também foram queimadas. Sindicatos das Indústrias Metalúrgicas bem como a entidade dos trabalhadores metalúrgicos recomendaram a suspensão do turno da madrugada das fábricas no início da semana.
Na página do Twitter, a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil alertou os cuidados para os cidadãos americanos que estivessem na cidade. “Devem evitar viagens não essenciais dentro de Manaus até que as condições de segurança melhorem, especialmente viagens de transporte público. Grupos criminosos organizados dentro da cidade alvejaram violentamente delegacias de polícia, ônibus urbanos e outras áreas públicas”. Um comentário registrado na publicação traduz o sentimento de quem vive na cidade: “Manaus não é para amadores”.
Desde então, a cidade vive uma espécie de lockdown involuntário: o trânsito diminuiu e serviços públicos foram suspensos. Os ataques frearam ainda a aglomeração em bares, tradicional em dias de jogo de futebol, e interromperam a vacinação contra a covid-19 por um dia. O retorno das aulas semipresenciais, com professores vacinados apenas com uma dose, também foi suspenso e retomado apenas na quarta-feira (9).
“O Norte acaba sendo uma rota, um território a ser empreendido pelo crime e pelo processo de política de enfrentamento. É uma região estratégica tanto para o Estado brasileiro quanto para o crime”, explica o cientista social Israel Pinheiro, doutorando em Sociedade e Cultura na Amazônia. Nos últimos anos, a região virou um importante corredor de cocaína no mapa do narcotráfico internacional —a droga é trazida das fronteiras com a Colômbia e Peru por meio dos rios amazônicos. O início dos ataques, segundo a Secretaria de Segurança Pública, se deu em retaliação à morte de um dos líderes do Comando Vermelho, Erick Batista Costa, de 30 anos, o Dadinho, em uma troca de tiros com policiais durante uma operação ainda não detalhada pelo órgão. O governador Wilson Lima afirmou, em live, que os ataques são “resultado do sucesso do combate ao tráfico de drogas no Estado”, que apreendeu 19 toneladas de entorpecentes em 2020 e 11 toneladas de janeiro a maio deste ano, além de 832 armas em 2021, até o mês de abril.
De acordo com informações do secretário de Segurança Pública do Amazonas, Luismar Bonates, em coletiva, a ordem para os ataques partiu de dentro do presídio. Até o momento 42 prisões já foram feitas após os ataques, segundo o órgão de segurança, sendo 19 na capital. Um total 144 policiais da Força Nacional foram autorizados pelo Governo Federal para atuar no Amazonas. Mas parte dos agentes da tropa, que estava a caminho de Manaus pela BR-319, sofreu um acidente na manhã de quinta-feira (10). A viatura caiu em uma área alagada no quilômetro 16, no município do Careiro Castanho. Não houve feridos.
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