Clipping

O que se trama contra os Povos Indígenas

Uma ofensiva geral ameaça territórios, direitos e saberes em nome do desenvolvimento — mas para instalar um neoextrativismo. O que está em jogo. Que normas expressam o ataque. Por que falamos num “colonialismo persistente”

Por Diogo Rocha e Marcelo Firpo Porto

A covid-19 desnuda nossas injustiças e devem ser confrontadas

As tendências históricas de injustiças, exclusão radical e violência contra indígenas e outros grupos vulnerabilizados se agudizam num contexto em que múltiplas crises se convergem: ecológica, política, econômica, social e sanitária. Nos dias que correm, a dimensão sanitária da crise civilizatória está em maior evidência devido à pandemia de covid-19, que vem infectando milhões de pessoas e já matou mais de 330 mil no planeta – números impressionantes que continuarão a crescer até que vacinas e terapias em desenvolvimento estejam disponíveis. No Brasil crescem vertiginosamente os números de infectados e mortos, e nos aproximamos tragicamente dos EUA, atual epicentro da pandemia. Uma aproximação não casual entre países cujos presidentes compartilham ideários neoliberais com narrativas racistas e negacionistas.

Esse texto apresenta elementos históricos e atuais sobre o processo de vulnerabilização de uma população particularmente ameaçada no Brasil, os povos indígenas. Nosso foco são as ameaças aos direitos territoriais, culturais, ambientais e à saúde no contexto do avanço da mineração e do garimpo sobre suas terras, que já existiam, mas que são reforçadas em tempos de pandemia. Com o necessário isolamento social enfrentamos um duplo desafio: de um lado, ações em curso como as do garimpo intensificam a propagação da covid-19, cujas consequências são agravadas pela fragilidade do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI/SUS). De outro, o isolamento dificulta ainda mais a participação na arena política e espaços de decisão numa conjuntura que ameaça os direitos indígenas. As ameaças estão em pleno curso com o Projeto de Lei (PL) 191/2020 que tramita na Câmara dos Deputados e regulariza a exploração de recursos minerais, hidrocarbonetos, agronegócio e o aproveitamento de recursos hídricos; a Medida Provisória (MP) 910/2019, recentemente substituída pelo PL 2.633/2020 que está em discussão no Congresso Nacional e, em essência, regulariza a grilagem, ou seja, as ocupações em terras públicas federais; e a Instrução Normativa (IN) 09/2020, emitida pela Funai em 22 de abril de 2020. Por meio dela, em vez de proteger os direitos indígenas o órgão passa a ser uma instância de certificação de imóveis para posseiros, grileiros e loteadores de Terras Indígenas.

Os efeitos sociais e econômicos da maior pandemia deste século são incertos, mas já se prevê que sejam profundos devido à paralisia da economia mundial e da necessidade dos Estados nacionais socorrerem empresas e pessoas, colocando em suspensão todo o receituário econômico neoliberal que dominou corações e mentes pelo menos nos últimos quarenta anos. Espera-se que a crise econômica irá afetar principalmente os países periféricos, que dependem da exportação de commodities e do turismo para assegurar o equilíbrio de sua balança comercial.

Os próximos tempos serão estratégicos na confrontação entre duas possibilidades na encruzilhada civilizatória em que nos encontramos. Ou teremos realinhamento de políticas sociais e econômicas de proteção aos grupos mais vulneráveis frente a covid-19; ou a manutenção de políticas neoliberais alinhadas a ideologias racistas, que pretendem manter ou mesmo acelerar o crescimento econômico e o neoextrativismo, multiplicando injustiças sociais, ambientais e sanitárias. A crise global abre brechas para que povos indígenas e outros grupos sociais se mobilizem junto com a sociedade para protegerem seus direitos territoriais e modos de vida. Mas também possibilita o avanço de uma agenda política excludente e anti-indígena face ao caos político e social que o país vive e com o qual deverá continuar a conviver nos próximos tempos.

Neoextrativismo, garimpo e padrão-ouro como colonialismo persistente

As relações entre a sociedade brasileira e os grupos étnicos e raciais politicamente subalternizados que coabitam o território hoje denominado de Brasil são historicamente marcadas por algumas constantes: racismo, violência e negligência em relação ao bem-estar daqueles que estão em desvantagem em uma estrutura social desigual assente em três eixos de discriminação: classicismo, racismo e etnocentrismo.

Quanto menos recursos econômicos e mais distante um povo se encontra do “padrão-ouro” da sociedade brasileira, mais se torna vulnerável a todo tipo de violação dos seus direitos fundamentais, e mais é preciso lutar para vê-los respeitados. A metáfora do padrão-ouro, usado como lastro do sistema monetário internacional em vigor até 1914, mas que até hoje funciona como investimento e enfeite de milionários, nos serve para ilustrar tanto a busca obsessiva por riquezas pelo capitalismo neoliberal, como sua atualização no modelo neoextrativista que incentiva o garimpo, causa de intensa degradação socioambiental em terras indígenas. Serve também para ilustrar o racismo decorrente dos padrões éticos e estéticos excludentes da modernidade eurocêntrica.

Esse padrão-ouro racista se refere, portanto, às tendências históricas de inclusão/exclusão radical e racial de nossa sociedade: branca, eurodescendente, falante do português e mais recentemente do inglês, educada para ver o mundo a partir do olhar do colonizador, envergonhada de suas raízes ameríndias e africanas, economicamente liberal, mas conservadora nos costumes, e extremamente permissiva quanto aos direitos sociais, humanos e ambientais. O padrão-ouro é um símbolo do colonialismo persistente, e que junto com a capitalismo neoliberal e o patriarcado representam as três formas de dominação que diversos processos emancipatórios e lutas sociais buscam confrontar.

Há fluxos e refluxos em diversos setores ao longo da história econômica do País, mas o setor mineral, há mais de quatrocentos anos, tem ocupado uma posição estratégica em nossa pauta de exportações, sendo, junto com o agronegócio, uma das principais frentes de expansão da economia brasileira contemporânea. É também uma das principais ameaças aos povos e comunidades tradicionais, entre os quais se destacam os territórios indígenas, que até hoje, devido às especificidades da legislação indigenista vigente, funcionaram como um freio legal a essas atividades.

As relações entre garimpo ou mineração com a consequente desestruturação do modo de vida e os impactos sobre o bem-estar dos povos indígenas na América são coetâneas ao próprio processo de colonização do continente. Desde o início da conquista das terras americanas pelos europeus, o desejo de rápida riqueza através do extrativismo do ouro, da prata e de outros metais e pedras preciosas tem mobilizado o translado da população europeia para as Américas e impulsionados processos de extermínio e desterritorialização dos povos que aqui viviam. Além disso, contato e contágio quase sempre caminharam juntos. Das cerca de 70 milhões de vidas que se, segundo estimativas, foram ceifadas em decorrência da violência e virulência do processo colonizador, incontáveis foram perdidas devido a epidemia de doenças para as quais os povos indígenas não possuíam imunidade e que dizimavam etnias inteiras rapidamente. Esse processo está se reatualizando com a ameaça da expansão das frentes de mineração e garimpos ilegais em plena pandemia de covid-19.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/o-que-se-trama-contra-os-povos-indigenas/

Comente aqui