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Paulo Arantes: Filosofia numa hora dessas?

Dossiê Cult destaca pensador inquieto, que viu no avanço autoritário sintoma da crise da democracia, da Cultura e da Filosofia. Propôs a ousadia de filosofar de forma coletiva o presente e viu na imaginação política resposta à desesperança

Este texto é parte da parceria editorial entre Outras Palavras Cult. Compõe a edição nº 272 da revista.
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A drástica redução tecnológica que a pandemia impôs a encontros presenciais – das velhas salas de aula a velhos ambientes de pesquisa e de intervenção cultural – parece agora propiciar o surgimento de muitas novidades especialmente alinhadas com a reprodução de usos e costumes do ensino e da aprendizagem mercantis. Difícil dizer que, com o pandemônio de tamanha redução, fermentassem novas e genuínas práticas de estudo, mobilizações da inteligência tais que estivessem fora da vala comum do telespectador melodramatizado e, ao mesmo tempo, teleguiado pelo efeito-câmera de um tipo de televisionismo ostensivo. Problemas da hora. Cuja formulação, no entanto, precisaria levar em conta o que pode haver de providencial no registro fidedigno da efêmera fala falada em aulas ou palestras presenciais, assim como no da fala falante em modos ampliados de acesso a um público maior.

Ocorre que só por fazer o que sempre tem feito há mais de 50 anos, o professor Paulo Arantes vai se tornando o interlocutor de uma legião de jovens que, no Brasil e fora dele, estudam ou se interessam pela amplitude e ousadia de perspectivas que, com suas aulas-live, seguem interrogando radicalmente o tempo e o mundo em que ainda vivemos.

Será suficiente destacarmos, aqui, algumas dessas perspectivas mais diretamente ligadas ao que elas haveriam de se tornar, se acaso fossem sugestões de estudos, inaugurassem programas de leitura e pesquisa, fomentassem planos de investigação e possibilidades de aprofundamento. Contrariando o receituário do que deve ser o gênero live e mais ou menos à margem do expediente acadêmico, talvez se tirasse algum proveito dessa permanente disposição do professor Arantes, muito cioso de socializar e tornar públicas as próprias ideias.

Três de três paulos

Salientemos o trecho de um vídeo gravado pelo Programa Pet-Filosofia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), em 17 de agosto de 2015. Em determinado momento, alguém na plateia pergunta a Paulo Arantes que temas ele consideraria pertinentes, naquela época, como eixos de pesquisa para jovens estudantes de filosofia no Brasil. Na resposta Arantes se refere ao livro The order of evils: toward an ontology of morals (A ordem dos males: rumo a uma ontologia da moral, 2005), de Adi Ophir, filósofo israelense que estuda as formas do mal: “o” assunto diz respeito diretamente à ocupação da Palestina. Na glosa da obra, Arantes assinala que o autor faz uma reflexão filosófica moral, elabora conceitualmente os dilemas práticos do conflito e conclui que a ocupação é um projeto apocalíptico, sem saída. A injunção, segundo Arantes, é clara: ou o filósofo pensa sobre isso ou não estará pensando sobre nada. E devolve a pergunta que ainda ressoa no ambiente digital em que ela se acha disponível: qual seria o equivalente disso no Brasil?

Como entre estudantes e interessados é recorrente e bem-vinda a dúvida sobre o que deveriam, prioritariamente, estudar em Filosofia, a resposta de Arantes explicita que a busca “do” assunto tem a ver com a conjunção de ao menos três orientações: atenção aos assuntos do presente histórico e filosófico; disposição de atentar para os estudos filosóficos mundo afora; exercício imaginativo de filosofia e história comparadas. Para tanto, estão pressupostas uma concepção do que seja a formação de uma cultura filosófica no Brasil e a responsabilidade do estudioso, um modo de abordar e intervir no que se pensa sobre as condições e determinações do presente, o que está longe de querer dizer estudar apenas as filosofias, os temas e os problemas ditos contemporâneos. Na chave do benefício, caberia ainda estudar o pensamento dos próprios filósofos em cena, seja o do brasileiro, seja o do israelense, devidamente guardados o senso dos extremos e o das proporções. Ao comparar dois laboratórios de exploração, dominação e opressão exercidos por dois Estados, a questão da ocupação militar de um território e o confinamento de toda uma população talvez fosse ainda, como dissera Bento Prado Jr. acerca de outro assunto, “uma pequena ruga na superfície das águas, mas que revela uma tormenta nas águas mais profundas e que não deixa intacto o valor da cultura e da filosofia”.

Em trecho da live “A desconstrução que estamos vivendo”, em 13 de maio de 2021, aula inaugural da turma de 2021 do curso de mestrado acadêmico em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), o professor Arantes reconstitui o contexto específico a partir do qual Roberto Schwarz pôde chegar à seguinte boutade: “a desconstrução existe, mas acontece de ponta-cabeça: é a realidade que passou a imitar o jargão filosófico”. Arantes nos conta que o ensaio de Schwarz “Fim de século” foi escrito no começo da década de 1990, sob o impacto de dois fenômenos de passado próximo: primeiro, o naufrágio da ditadura, que entregou aos sucessores um país destruído (crise da dívida externa, hiperinflação, decomposição social); segundo, a leitura de O colapso da modernização, de Robert Kurz, a partir da qual Schwarz se pergunta sobre o Brasil no trágico desmanche dos países pós-catástrofe. Já o fenômeno mais remoto, é possível encontrá-lo em Marcel Proust, na transposição pela qual ele põe na boca de seu personagem, o Barão de Charlus, aquilo que Oscar Wilde havia dito contra o dogma da arte pela arte: se a realidade é que teria passado a imitar a pintura, ambas agora se expõem numa galeria singular, que vai de impressionistas realmente existentes às aquarelas imaginadas de um Elstir. Voltando ao passado recente, mais uma vez a realidade imitaria a arte; desta feita, porém, numa experiência social imediata e sedimentada na forma literária, quando Schwarz encontra em Estorvo, de Chico Buarque, o ponto da reviravolta crítica em questão. Daí a conclusão que, resumida na tirada que mencionamos acima, foi orientando as considerações de Arantes sobre a mundialização da Ideologia Francesa. Como, desse ponto de vista, o fenômeno Ideologia Francesa não nos dispensa de repensar a Ideologia Alemã, faria todo sentido do mundo, hoje, enxergar uma inversão operando na famosa 11ª proposição das teses de Marx ad Feuerbach?

Dito de outro modo, se a relação desmanche/desconstrução sugeria a Schwarz uma melhor compreensão da matéria social brasileira, acarretando um tipo de arejamento no miasma do ramerrão filosófico, Arantes enxerga seu potencial sugestivo para ponderar sobre a relação capitalismo/Ideologia Francesa – uma via promissora para abordar as aclimatações e decorrências filosóficas, psicanalíticas e políticas da desconstrução, no rastro da Ideologia Francesa nos Estados Unidos e no Brasil. Como efeito em cadeia e situada em outro fuso histórico, a recombinação implica então outra sacada – algo do tipo: “Esses filósofos têm apenas pretendido transformar o mundo, de diferentes maneiras; a questão, porém, é interpretá-lo”. O resultado, nos anos em que Arantes redigia os ensaios de Formação e desconstrução, permitia desnudar o caráter fraseológico da visada desconstrucionista e o teor essencialmente problemático da Ideologia Francesa. Permitiria a publicação do livro repor o debate na chave de interrogar, em 2021, o alcance da combatividade presente nos movimentos filiados ao desconstructive turn?

O terceiro fragmento foi colhido numa live promovida pelo Núcleo de Estudo Crítico das Políticas Públicas, de Santo André (SP), em 18 de agosto de 2020. Num dos raros momentos de referência a sinais de “esperança”, Arantes recorda um trecho do primeiro volume do livro O princípio esperança, de Ernst Bloch. Pondo em foco o teatro como “instituição paradigmática e a decisão nele tomada”, Bloch descreve a situação de pessoas na rua, à espera de comprarem ingressos na fila da bilheteria. Pergunta-se, no texto, o que pensam essas pessoas. Arantes por seu turno esclarece que se trata de um texto escrito em pleno 3º Reich, embora a cena retomasse uma realidade dos anos 1920: a de um público formado em parte pela experiência do teatro como arte, em parte pela busca de amenizar a fadiga do trabalho, em parte pela busca mais leviana de mero entretenimento ligeiro. Todos, porém, assinala Arantes, alimentando a expectativa legítima de que, abertas as cortinas, apareceria ali um novo mundo, diferente e melhor. Se tais expectativas – rememoradas e perfiladas como um rastilho de pólvora no contexto adverso do 3º Reich – dão testemunho da esperança condicional por um mundo novo, não menos condicional haveria de ser a conclusão do professor: “Se nós do teatro pós-pandêmico tivermos uma sala como essa, com gente esperando para entrar e imaginando alguma expectativa que transcenda a própria fila, então o teatro estará salvo; ainda poderemos, em certo sentido, ter alguma esperança”.

“Ele pensava dentro de outras cabeças; e na sua, outros, além dele, pensavam. Este é o verdadeiro pensamento” (Bertolt Brecht)

Ao estender o mapeamento dos caminhos e descaminhos da esperança até os profissionais do teatro, Arantes descreve o circuito das expectativas e dos propósitos surgidos no debate, apontando para um novo tempo do teatro do mundo. Alguma esperança em ato nessa “arte de pensar na cabeça dos outros”? No cuidado de sempre oferecer a bibliografia em que respalda sua glosa, pode alguma esperança ressurgir dos livros, fagulha de uma lembrança nada óbvia em tempos de tamanho obscurantismo educacional, só que bem longe do esnobismo livresco e mais próximo de uma chave fornecida por outro mestre, Chico de Oliveira, que certa vez formulou: “em tempos de crise” – entendemos, entre estas e as próximas aspas: em tempos de desconstrução mundializada, exceção impensada e programadas obsolescências da figura do intelectual – “é preciso voltar à mesa de estudos”.

A fala de Paulo Arantes, como não poderia deixar de ser, é marcadamente ensaística. A justificativa, se fosse preciso mais do que a própria fala, é sempre explicitada nas várias menções que faz aos mestres que o formaram, direta ou indiretamente: Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Bento Prado Jr. e Roberto Schwarz, para lembrar apenas os mais citados.

A famosa história que Arantes conta, em outro registro – de que, logo no começo do curso, teria recebido de Bento Prado Jr. um maço de textos de autoria de Gérard Lebrun com a recomendação expressa: “leia, estude e imite, é assim que se deve escrever” –, acrescenta um mestre francês e confirma a primeira lição de casa. A segunda lição, como decorrência necessária, era aprender também a falar como se passava a escrever. Providências de outro tempo, espécie de etiqueta do que se concebia como excelência na formação filosófica. E essa consideração talvez nos ajude a explicar um pouco melhor em que sentido poderíamos chamar de farpado o estilo ensaístico presente na fala de Paulo Arantes. Talvez mais óbvio, um estilo que exige precaução e atenção redobradas, porque resultado de longa e cuidadosa sedimentação. Pela intensidade das referências bibliográficas cruzadas e articuladas no empenho de apurar a visada que permite abordar por vários aspectos o assunto. No sentido de que nossa atenção vai sendo fisgada, retida pelas ideias e pelas formulações, porque representam convergências fecundas ao exercício do pensamento. Pelo que muitos caracterizam como sarcasmo, ironia e, às vezes, mordacidade, são antes venenos contra a Teoria do Medalhão. A farpa aponta direções, porque assume declaradamente posição política. Como verbo, farpar exprime ainda algo dos sentidos de ruptura, o que, em termos políticos, fala alto a imaginações dialéticas. Como decorrência, poderíamos nos perguntar: o que essas farpas ameaçam, o que apontam, o que fisgam, o que contornam, o que marcam e o que rompem? As respostas a essas questões nos interessam, mas dependem tanto da ponderação de cada um a partir dos seus próprios espelhos quanto do acordo de que a formação daquele sujeito coletivo depende de um pacto de confiança, de honestidade, de solidariedade, de descompartimentalização e de desindividualização intelectual progressiva.

Fotogramas de movimento e parada

Nessas amostras – aqui sugeridas como fotogramas nos quais a exposição em linha representa apenas a primeira camada, será possível talvez perceber todo um jogo de movimento e parada, pensar sem nenhuma pressa o que poderia significar uma retomada, seus pontos de viragem e nossos próprios passos adiante – os traços de uma ética docente que, em ato, nos ajudam a pensar a parte que nos cabe nesse amplo e preciso circuito de formação cultural.

Porque recusa todo dogmatismo, em benefício do debate crítico intensivo e extensivo; porque nega o regime que partilha e rebaixa a democracia a um racionamento que não para de reduzi-la à míngua; porque vira pelo avesso a redução tecnológica para atestar que nele ainda se avistam outros lados, para muito além do lado que a torna somente uma ampliação apologética de gurus e expertos – Paulo Arantes, nas suas análises concretas de casos concretos, não termina de colocar em causa a emergência e o potencial, mais ou menos imponderável, dos novos e precários intelectuais.

Veja em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/paulo-arantes-filosofia-numahora-dessas/

Esse exercício de vida inteira esteve no sangue bom que circulou nos Seminários da Escola Nacional Florestan Fernandes e no Seminário das Quartas. Lá como cá, nas lives, importa aprendermos a pensar coletivamente – não será demais insistir: uns nas cabeças dos outros, e vice-versa. Nisso, a Tese 11 poderia talvez reencontrar seus eixos originais e emancipatórios.

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