Clipping

“Sem revisão da Lei da Anistia, o passado vai bater à porta”

Campanha pede que STF reinterprete lei de 1979 que garante impunidade de torturadores. Em entrevista, ex-secretário de Direitos Humanos defende importância da medida para evitar instabilidade política e democrática.

Um movimento pela reinterpretação da Lei da Anistia no Supremo Tribunal Federal (STF) foi lançado na semana passada. O #ReinterpretaJáSTF é uma iniciativa articulada por diferentes organizações de direitos humanos e do meio jurídico.

Sancionada em 1979 pelo último presidente do regime militar, João Batista Figueiredo, a Lei da Anistia foi o instrumento utilizado pela ditadura para assegurar a impunidade dos crimes praticados pelo Estado desde 1964.

Na retórica adotada pelo regime à época, a medida beneficiava “ambos os lados”, uma vez que isentava de responsabilidade criminal os opositores políticos que participaram da luta armada — embora vários deles tenham sido assassinados, presos e torturados durante a ditadura.

A discussão ganhou novo fôlego no período democrático, sobretudo quando o STF pautou a revisão da Lei da Anistia, em 2010, com a relatoria do ex-ministro Eros Grau. Na época, manteve-se o entendimento adotado pelos militares, por sete votos a dois. Um recurso apresentado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contra a decisão está parado desde então.

Em 2019, a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge pediu ao STF prioridade à discussão. Ela alertou que a manutenção desse entendimento tem livrado torturadores da execução de sentenças da Comissão Interamericana de Direitos Humanos nos casos Vladimir Herzog e da Guerrilha do Araguaia.

A campanha recém-lançada mira justamente no argumento da incompatibilidade da lei de 1979 com os acordos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Mas o pedido, desta vez, é pela sua reinterpretação.

Com esse objetivo, o Instituto Vladimir Herzog entrou com uma petição de amicus curea (amigo da corte) para contribuir no julgamento de uma ação do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) de 2014 que questiona os efeitos da Lei de Anistia.

Na entrevista a seguir, Rogerio Sottili, diretor-executivo do instituto, afirma que o objetivo da campanha é construir uma discussão de longo prazo que envolva os ministros do STF, majoritariamente contrários à mudança de entendimento proposta.

Para Sottili, que foi secretário especial de Direitos Humanos do governo federal entre 2015 e 2016, a importância de reinterpretar a Lei de Anistia não se resume ao passado, mas tem impacto sobre o presente e o futuro da sociedade brasileira.

“Se nós não conseguirmos responsabilizar judicialmente todos os assassinos e torturadores, esse passado sempre vai bater à porta. E nós estaremos vivendo, no futuro, outros momentos como este, de total instabilidade política e democrática”, defende.

DW: Por que o Instituto Vladimir Herzog pede que o STF reinterprete a Lei da Anistia?

Rogério Sottili: A Lei da Anistia é uma lei editada pela ditadura militar para a transição democrática, considerando que todos os crimes cometidos durante a ditadura seriam anistiados. O espírito é: pronto, acabou, não se fala mais nisso. O STF nunca havia se manifestado sobre seu entendimento acerca dessa lei, e tinha um grande debate em torno disso. Em 2009, o então ministro Eros Grau, relator na questão da Lei da Anistia, deu uma interpretação extremamente inadequada no nosso entendimento. Sua leitura não tinha relação com a Constituição Federal e nem com a legislação internacional.

O Brasil assinou de forma voluntária todos os pactos internacionais que consideram os crimes de lesa-humanidade, como os de tortura e desaparecimentos forçados, não passíveis de anistia e imprescritíveis. Isto é, todos os crimes cometidos no passado, independentemente de quantos anos se passarem, poderão ser julgados, e os responsáveis, punidos. Este é o pacto internacional que o Brasil assinou de forma voluntária. Ninguém obrigou. E a assinatura foi aprovada pelo Congresso à época. Isso significa que os crimes da ditadura serão anistiados com exceção daqueles de tortura e desaparecimentos forçados, como previsto na legislação internacional. O Eros Grau não considerou isso.

A própria Constituição brasileira cita os pactos internacionais com relevância, e o princípio geral da carta magna coloca sob absoluta prioridade os princípios dos direitos humanos, ligados com os acordos internacionais. A gente está pedindo hoje que o STF recoloque em pauta essa discussão. E a gente vai brigar por uma reinterpretação da Lei da Anistia. Nós não queremos mudar a lei, que está posta, mas a interpretação que o Supremo dá sobre ela. Este é o ponto.

Saiba mais em: https://www.dw.com/pt-br/sem-revis%C3%A3o-da-lei-da-anistia-o-passado-vai-bater-%C3%A0-porta/a-57129394

Comente aqui