Nascido sob o jugo escravista no sul dos Estados Unidos, ele conquistou a liberdade e a fama com os próprios punhos. Cruzou o Atlântico para enfrentar seu maior desafio – em uma sociedade que se negava a reconhecer sua grandeza
Por: Luís Gustavo Reis | Imagem: Litografia The Boxers (1818), de Théodore Géricault. A pintura representa a luta entre Tom Molineaux e Tom Cribb
Duzentos anos antes de Muhammad Ali, Mike Tyson e Evander Holyfield, um pugilista afro-americano incendiou ringues nos Estados Unidos e na Inglaterra. Punhos cerrados, corpo esguio e olhar fumegante, Tom Molineaux ficou conhecido nas arenas como o “Campeão da América”. Parte de sua trajetória será recontada a partir de agora.
Nascido em 1784, na Virgínia, filho de pai e mãe escravizados, Tom passou parte da infância trabalhando na colheita de algodão nas vastas plantações cultivadas por seus proprietários. Proveniente de um berço de boxeadores, pai e irmãos pugilistas, aprendeu a arte marcial com a própria família nos momentos de descanso desfrutados após as jornadas de trabalho. Ao seu pai atribui-se, inclusive, o título de primeiro boxeador da América. A história e os feitos do patriarca, no entanto, foram perdidos no tempo e no espaço e nada sabemos sobre esse interessante personagem.
Na adolescência, período em que seu corpo começou a ganhar contornos atléticos e os sinais da puberdade evidenciavam a passagem do tempo, Tom Molineaux participou das primeiras lutas contra outros jovens. Um dos entretenimentos adotados por senhores de escravizados consistia na promoção de combates entre os cativos. Ao estimular o corpo a corpo, de escravizados contra escravizados, os proprietários estimulavam a divisão entre os desafortunados.
As lutas poderiam ser endógenas, ou seja, entre os cativos de uma mesma fazenda ou até competições envolvendo escravizados de estados vizinhos. Apostas, promessas, álcool, fumo e muito sangue compunham o cenário onde os embates aconteciam e um grande número de pessoas, homens mormente, preenchiam cada espaço em torno das áreas de combate.
O desempenho de Molineaux foi crescendo paulatinamente e as vitórias animavam os espectadores. Entusiasmado com a performance de seu cativo, farejando oportunidades de maiores ganhos financeiros, o proprietário de Molineaux contratou um marinheiro inglês versado no pugilismo para melhorar as técnicas de boxe do jovem escravizado. A jornada de Molineaux começava antes do sol raiar, quando dezenas de caroços de algodão pululavam dentro do cesto que carregava nas costas, e encerrava noite adentro nos treinos com seu instrutor. Nos momentos em que o cansaço e a apatia teimavam em desestimular Molineaux, o castigo vinha na ponta do chicote vibrando na pele retinta a mando de seu senhor.
Após sucessivas lutas, poucas derrotas e diversas vitórias, chegou o derradeiro dia em que conquistou seu maior cinturão: a liberdade. Foi numa manhã ensolarada de domingo, a fazenda onde vivia tomada pelo público, a ansiedade generalizada a correr os convivas que aguardavam a luta entre dois gigantes: de um lado, o rapazote treinado com técnicas inglesas, do outro, um famoso cativo conhecido por golpes definitivos. Embora a notoriedade do adversário deixasse o anfitrião temeroso, Molineaux venceu o visitante com facilidade, incendiou a plateia e arrancou um largo sorriso de seu senhor. Não era para menos, o jovem acabara de tornar o fazendeiro $100 mil dólares mais rico após ganhar uma portentosa aposta. Quando os comensais foram embora, Molineaux teve uma grande surpresa: seu prêmio foi a assinatura da carta de alforria – doravante, estava livre do cativeiro.
Empolgado pelos ventos que sopravam do Norte, o jovem pugilista decidiu migrar para Nova York. As lutas naquela cidade ocorriam aos montes, repletas de amadorismo, pomposas apostas e muita algazarra. Foram os distintos nocautes que tornaram o migrante sulista reconhecido entre marujos, marinheiros, estivadores e toda casta dos chamados “homens do mar”. As lutas nas docas eram as mais frequentes, passatempo principal da marujada ociosa. Foi justamente os marítimos, desocupados, beberrões e bandoleiros que deram o título ostentoso ao ex-escravizado: para eles, os marginalizados, Molineaux era o “Campeão da América”.
Lutando por si mesmo, Tom Molineaux foi ganhando notoriedade, reconhecimento e pecúlio para alçar voos mais longos. Nas infindáveis confabulações no cais, os marinheiros lhe contaram sobre o dinheiro e o prestígio de um certo Tom Cribb, famoso boxeador que agitava plateias nos ringues da Inglaterra.
Os portos eram lugares de passagem, entrada e saída de produtos, pessoas e notícias. A fama do boxe britânico chegou aos diferentes rincões do mundo por meio de relatos, escritos e financiamento de inúmeros viajantes. Fascinado pelas histórias, Molineaux começou a procurar um navio que zarpasse para o território inglês: queria deixar seu solo natal em busca de glória e renome. Obstinado para cruzar o oceano, o pugilista encontrou abrigo num navio mercante, levantou âncora e rumou para o desejado destino:
“A distância não criou obstáculos, nem os mares revoltos foram impedimentos para suas visões heroicas, e, como o aventureiro ousado que nada sofre para frustrar seus propósitos, o objeto de seus desejos foi conquistado e ele, finalmente, desembarcou na capital mais invejável do mundo – LONDRES.”
No início do século XIX, período em que nosso personagem desembarcou em Londres, o boxe passava por grandes transformações na Inglaterra. Concursos importantes, competições disputadas, campeonatos acirrados fizeram dos torneios e dos atletas, especialmente, grandes celebridades nacionais.
Conquistando cada vez mais adeptos e público, o esporte se tornou o entretenimento favorito entre os ingleses. Para muitos, inclusive, o pugilismo espelhava questões sociais profundas da sociedade. Nas tavernas, moradias, ruas, jornais, fábricas, repartições públicas e tantos outros espaços, questionava-se o caráter do boxe. A modalidade enfraquecia ou fortalecia os britânicos? Havia alguma conexão entre a vitória e a virtude moral do ganhador? As qualidades esperadas no ringue eram transmitidas aos espectadores?
Os críticos do boxe o viam como um antro de jogo de azar, bebidas e vícios, enquanto seus defensores acreditavam que o ringue era uma barreira contra o declínio da própria sociedade, preservando a dureza e a imparcialidade que estavam no âmago do caráter nacional inglês. As competições municiavam ambas as partes do debate. De um lado, era preciso coragem para entrar no ringue. Por outro, havia poucos exemplos virtuosos ocorridos dentro das quatro cordas. Por mais que os ingleses se orgulhassem das características sofisticadas de suas lutas, as partidas eram sangrentas, exaustivas e perigosas.
Um regimento chamado Regras de Broughton, elaborado em 1743, determinava as regras para os combates. As lutas eram realizadas ao ar livre, diretamente no solo, com cordas demarcando uma área quadrada definindo os limites do ringue. Os boxeadores não usavam luvas, introduzidas anos depois para proteger as mãos e permitir que os lutadores socassem com mais força. Não havia limites para o número de rounds (rodadas), que acabava somente quando um dos arrivistas tombasse.
Quando caísse por um golpe certeiro, os lutadores tinham até 30 segundos para retornar ao “scratch”, uma marca no centro do ringue, e podiam contar com a ajuda de algum auxiliar. Caso não conseguisse se recompor no tempo estabelecido, seria considerado derrotado. Nesse meio minuto, o boxeador não poderia bater no adversário que estava caído ou ajoelhado, tampouco puxá-lo pelas pernas ou atacá-lo em qualquer parte do corpo. As lutas duravam até que algum dos competidores desistisse e decretasse o oponente como vencedor.
Muitos boxeadores lutavam contundidos, com sérias concussões e ossos quebrados, às vezes sofrendo dezenas de nocautes graves o suficiente para causar, pelos padrões atuais, a interrupção imediata de qualquer luta. Golpes e investidas acima da cintura estavam liberados desde que o oponente não estivesse no chão. A pancadaria tinha carta branca nos tempos do colonialismo inglês.
Vez por outra, buscando aumentar o frenesi e ampliar a tensão, policiais apareciam no meio da luta para prender boxeadores e conduzir parte do público para o xilindró. Além disso, espectadores indignados com os rumos da contenda invadiam o ringue para atacar um dos lutadores. Guardadas as devidas particularidades, as lutas daquele período congregavam técnicas de boxe moderno, de MMA e de uma descontrolada briga de bar.
As lutas que valiam prêmios eram ilegais, mas foram seguidas, organizadas e estimuladas por um grande público que incluía artistas, autoridades (leigas e religiosas), limpadores de chaminés, estivadores, marinheiros, prostitutas, bandidos, batedores de carteira – toda a gama bandoleira da vertiginosa sociedade inglesa do século XVIII. Geralmente, as lutas eram realizadas fora da cidade, os locais mantidos em segredo até o último minuto para evitar alertar os magistrados e, por consequência, a conhecida truculência policial.
Embora sob permanente vigilância, o boxe era fonte de orgulho nacional e seus praticantes eram vistos como encarnações corajosas, duras e honestas do espírito destemido do Império inglês. Afinal, diziam os jornais, foi a Inglaterra que desenvolveu técnicas pugilísticas sofisticadas que contrastavam com a crueza e a desorganização de brigas ocorridas em outras partes do globo.
Quem imperava neste mundo tresloucado era um sujeito chamado Tom Cribb, ídolo número 1 do público e aclamado como “Campeão da Inglaterra”. Ex-carregador do porto de Londres, o pugilista construiu supremacia combinando habilidade tática, condicionamento físico impecável e obstinação sombria. No período em que trabalhava no cais, Cribb foi esmagado por uma caixa de 230 kg de laranja, vomitou sangue por alguns dias, se recuperou completamente e voltou ainda mais vitalizado ao trabalho.
A fama no ringue veio em 1807, quando Cribb derrotou o habilidoso Jem Belcher em uma luta brutal de 41 rounds. No ano seguinte, trucidou o gigante Bob Gregson num combate sangrento que chocou até os olhos acostumados às fraturas expostas dos competidores. Gregson era considerado invencível, proeminência que carregou até ser esmagado pelos punhos de Cribb.
Era esse notório Tom Cribb que nosso personagem, Tom Molineaux, queria enfrentar na arena. A ambição desse afro-americano, desconhecido e ignorado nas ruas britânicas, era um plano tão inviável quanto para você, caro leitor, ou eu vagar pela Granja Comary exigindo ser centroavante da Seleção Brasileira de Futebol em plena Copa do Mundo!
Mas Molineaux era carismático, altivo e perspicaz em sua autopromoção. Passou a frequentar tavernas, pubs e boates conhecidos pelo público amante do pugilismo anunciando que ele migrou dos Estados Unidos onde era conhecido como o “Campeão da América”. Ali, espreitado por muitas pessoas, dizia que faria Tom Cribb beijar o solo e que ele, Molineaux, seria a nova estrela do boxe em Londres. Não bastasse ser o “Campeão da América”, também seria o “Campeão da Inglaterra”.
Foi nessas incursões que encontrou o bilhete da sorte: conheceu aquele que passaria a ser seu treinador em território londrino, ninguém menos que Bill Richmond.
Richmond era um ex-escravizado que também migrou dos Estados Unidos e entrou para história como uma das primeiras celebridades esportivas negras do mundo. Rigoroso e requisitado, o treinador concordou em ensinar técnicas pugilísticas ao patrício recém-desembarcado na sede do Império inglês.
A dupla Richmond/Molineaux rendeu resultados substanciais, traduzidos tanto pela amizade estreita entre ambos quanto pelas sucessivas vitórias logradas nas competições que participavam. Em uma das lutas, Molineaux esmurrou de tal forma o adversário que o desfigurou completamente, sendo impossível discernir as características faciais do desventurado. No final do embate, os observadores ficaram surpresos com o desempenho e aperfeiçoamento de Molineaux, que exibiu destreza, força e técnicas sofisticadas bastante superiores ao oponente.
Molineaux x Cribb
Restava agora a esperada luta contra Tom Cribb, que a essa altura conhecia a argúcia do pugilista estadunidense que perambulava pelos ringues à espera de um oponente à altura. Na boca do populacho, corria o buchicho de que o embate transcendia a luta corporal para refletir a superioridade branca e o nacionalismo inglês: “Algumas pessoas ficaram alarmadas com a simples ideia de que um negro estrangeiro poderia conquistar o campeonato de boxe na Inglaterra e enfeitar sua testa escura com os louros suados de Cribb”, relatou um respeitado jornal do período.
Molineaux agora era famoso entre os bandoleiros londrinos. Enquanto seu treinador, Bill Richmond, manobrava nos bastidores para colocar Tom Cribb no ringue, seu protegido comprava roupas novas, desfilava pelas tavernas com a ralé britânica e se embebedava em pubs repugnantes, mantendo um fluxo constante de fanfarronice sobre sua inevitável vitória sobre Cribb. Muitos jornais o chamavam continuamente de “o negro”, “o gladiador negro”, “o preto”, “o preto terrível” e até de “o mouro”. Diziam, inclusive, que “o aspirante negro” havia sido afligido “com a vaidade tão notavelmente característica de sua raça”.
O afro-pugilista adorava a vida selvagem. Molineaux era figurinha carimbada no submundo das bebedeiras, aparecia em um bordel diferente a cada noite e brigava com Richmond sobre como suas incursões e excessos estavam afetando seu treinamento. O treinador o incentivou a moderar seu comportamento, mas Molineaux riu das advertências do amigo e declarou que um pouco de diversão não amoleceria seus punhos.
Para muitos amantes do pugilismo, a notoriedade de Molineaux era uma fonte de ansiedade crescente. Era impossível não vê-lo como o principal candidato a derrotar Cribb. Mas se ele era uma ameaça, por menor que fosse, então o auge do boxe inglês poderia em breve ser ocupado por um afro-americano – um pesadelo para aqueles que acreditavam que o pugilismo estava ligado exclusivamente ao mundo britânico.
Após negociação entre as partes, o combate foi marcado para 18 de dezembro de 1810. Numa fazenda decrépita com acesso bastante dificultoso, localizada nos arredores de Londres, ensopados por uma chuva torrencial e com lama até o pescoço, cerca de 10 mil espectadores caminharam mais de oito quilômetros para chegar ao campo onde a arena foi montada. Quase que subindo um em cima do outro, a multidão acotovelava-se por uma brecha que lhes permitisse enxergar os astros do pugilismo em cima do ringue.
Por volta do meio-dia, o mestre de cerimônias ordenou que algumas carruagens dos espectadores fossem estrategicamente posicionadas perto do ringue para evitar que o evento frio do inverno atrapalhasse os competidores. Os lutadores, por sua vez, tiraram suas camisas.
Muito antes da arbitragem autorizar o início da luta, a multidão pró-Cribb começou a cuspir seu veneno racista contra Tom Molineaux e insultos preconceituosos tentavam, em vão, desestabilizar o afro-americano. O germe do preconceito corria na corrente sanguínea do Império britânico há décadas.
A luta começou, tensa e comedida, sem nenhum dos adversários ousando alguma iniciativa mais incisiva. Os lutadores estavam lidando não apenas com a pressão do público, mas também com a chuva impetuosa e um solo encharcado de lama.
O boxeador inglês não era apenas o favorito do público, mas também um grande favorito nas apostas que diziam que Molineaux perderia em 15 minutos. Cribb acertou um golpe de esquerda potente na sobrancelha de Molineaux logo no segundo round. O afro-americano cambaleou, mas se manteve de pé. No round seguinte, Molineaux atingiu Cribb na boca e tirou o primeiro sangue da partida.
As rodadas se sucediam sem um desfecho cabal. A cabeça de Molineaux jorrava sangue enquanto a de Cribb estava terrivelmente inchada do lado esquerdo. A multidão, uivante e inquieta, assistia round após round com nervosismo e apreensão. O pugilista negro não caiu tão facilmente quanto eles esperavam, e Cribb parecia estranhamente vulnerável. Então, na 9ª rodada, Molineaux desferiu um golpe que mudou o curso da luta. Atingindo ferozmente Cribb, acertou a guarda do campeão, atingiu-o no rosto e o derrubou. Os golpes deixaram Cribb atordoado.
O afro-americano parecia implacável, saltitando de um pé a outro, rodada após rodada esmurrando o adversário sem permitir oportunidade de revide. O “campeão inglês”, “astro londrino”, “a força do Império”, sucumbia aos punhos calejados do ex-escravizado. Contra todas as probabilidades, o lutador negro não estava apenas resistindo contra o invencível campeão inglês. Ele estava ganhando.
Num determinado momento, Molineaux imobilizou Cribb com uma chave de braço anulando qualquer possibilidade de reação do adversário. O golpe era válido, mas a luta foi paralisada. Inconformados, centenas de apoiadores de Cribb invadiram o ringue, cercaram, ameaçaram e quebraram um dos dedos de Molineaux.
Embora os entusiastas do boxe defendessem que, antes de tudo, o que fazia o esporte valer a pena era que ele incutia uma ideia de jogo limpo, esse senso de justiça não valia para um imigrante ex-escravizado que estremeceu os pilares do pugilismo britânico. As regras: nada de esfaquear um oponente pelas costas, nada de atacar um homem indefeso, lute apenas quando ambos os homens estiverem prontos; dessa forma, com ambos os arrivistas tendo a mesma chance sob as regras, é possível determinar qual deles é o melhor. Mas isso falhou inúmeras vezes para Tom Molineaux.
Após o incidente da invasão do ringue, a arbitragem limpou o ringue e autorizou o prosseguimento da luta. Apesar das ameaças e da lesão, o afro-americano permaneceu austero. No 28º assalto, as apostas dos espectadores, que antes eram majoritariamente em Cribb, agora estavam equilibradas. Nas palavras de Pierce Egan: “Na 28ª rodada, depois que os boxeadores foram carregados para os cantos, Cribb estava tão exausto que mal conseguia se levantar”.
Parte do público, excitado e divido com o embate, acreditava que Cribb já deveria ter sido considerado derrotado. No 27º round, Molineaux nocauteou o adversário que bateu com o rosto na lama e não conseguiu se levantar após os 30 segundos regulamentados. Nesse sentido, conforme as regras, o afro-americano tinha vencido e já deveria estar celebrando o êxito. Mas os treinadores de Cribb, astutos, correram para o ringue dizendo que Molineaux estava trapaceando. Segundo os detratores, o negro segurava pequenas bolas de ferro em seus punhos para tornar seus golpes mais fortes. A acusação era esdrúxula, mas estratégica o suficiente distrair a arbitragem a arbitragem até Cribb recuperar a consciência e conseguir recompor a postura. Sejam eles cúmplices ou desatentos, os árbitros deixaram a violação de tempo passar e alteraram completamente o rumo da luta.
Cribb retomou a vitalidade, acertou diversos socos e deixou o adversário cambaleando. Após exaustivas 44 rodadas, totalmente exausto, com as pálpebras inchadas e o rosto cheio de hematomas, Tom Molineaux cedeu e o inglês foi considerado vencedor. A multidão enlouqueceu: quem aquele imigrante negro achava que era para afrontar o desportismo britânico? O que levou um ex-escravizado a acreditar que poderia derrotar o “campeão inglês”? Sendo famoso ou não, a verdade é que Molineaux venceu a luta sem ser sagrado campeão.
Passados alguns dias, Molineaux escreveu uma carta para Cribb culpando o clima chuvoso, o solo lamacento e sugerindo uma revanche, convite prontamente aceito pelo inglês. Até que o novo embate acontecesse, Cribb passou por intensa preparação, contratou novos treinadores, enveredou por um caminho austero. Tom Molineaux, ao contrário, faltava nos treinos, levava uma vida cada vez mais louca, bebendo demais, comendo demais, discutindo com Bill Richmond, gastando quase todo seu dinheiro com prostitutas.
Em 18 de setembro de 1811, quase um ano após a primeira, a segunda luta foi marcada. Mais excitados que os próprios lutadores, cerca de 15 mil pessoas lotaram o local do embate. Na manhã do embate, Molineaux tomou uma caneca de cerveja e devorou uma torta de maçã. Totalmente despreparado mental e fisicamente, seguiu até o ringue. Dessa vez, sem muitos contratempos, Cribb o nocauteou no 11º round. Apesar da derrota, a história já havia sido escrita e o afro-americano deixou seu nome registrado no panteão dos melhores atletas anônimos do pugilismo.
Após a derrota, desgostoso com a vida desregrada de seu aluno, Bill Richmond rompeu a parceria com Molineaux e foi desfrutar de uma modesta aposentadoria. Tom Cribb encerrou a carreira no boxe, abriu um pub e recebeu grandes homenagens após a morte. Em sua lápide, uma faixa dizia que ele era o herói nacional e um grande leão de pedra adornava seu túmulo.
Molineaux migrou para o norte da Inglaterra, desmoralizado como lutador e tentando, dolorosamente, estabelecer uma carreira como treinador de boxe. Suas andanças o levaram até a Irlanda, onde viajou de cidade em cidade procurando estudantes interessados em aprender técnicas pugilísticas. Parecendo um esqueleto ambulante, desmaiava frequentemente e dormia ao relento nas frias ruas irlandesas. Alcoólatra, morreu esquecido e anônimo no verão de 1818, logo após completar 34 anos de idade.
Não é nenhuma novidade, evidentemente, dizer que o esporte é frequentemente injusto, ou que as sociedades muitas vezes preferem usá-lo para confirmar ideias equivocadas e preconceituosas. Vez por outra, porém, aparecem rachaduras na história impossíveis de esconder. Tom Molineaux, o ex-escravizado, foi injustiçado pelo boxe e o boxe nunca se redimiu. Nem por isso, o pugilista deixou de seguir em frente, talvez porque seus propósitos eram outros. Oxalá, desde a estreia como boxeador, Molineaux sabia: os alvos dos seus nocautes não eram os seus adversários – era a escravidão, o racismo. O negro esmurrava o seu passado, esmagava nas cordas o sofrimento dos seus companheiros de cativeiro, dos seus irmãos de raça. Ele venceu seu estatuto de prisioneiro graças ao pugilismo e depois, como homem livre, expurgava os anos de liberdade cerceada nos ringues mundo afora.
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