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Furto ​famélico, fenômeno crescente num país desigual

No direito, furto famélico é a subtração de produtos devido a necessidade, sobretudo por fome. Embora sem estatísticas judiciárias, é provável que seu aumento no Brasil decorra de um agravamento econômico e social.

Por: Malu Delgado | Créditos da foto: Fabio Teixeira/Zuma/imago images. Parcela de brasileiros sem dinheiro para se alimentar subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021.

Furto de barras de chocolate que somavam R$ 20,00; furto de seis quilos de linguiça no valor de R$ 51,00; furto de três peças de carne, totalizando R$ 172,50. Esses três casos de furto, de valores insignificantes, chegaram recentemente à análise do Supremo Tribunal Federal (STF).

Isso comprova como é diverso o entendimento do Judiciário sobre furtos famélicos – conceito entendido no direito como a subtração de produtos por “estado de necessidade”, sobretudo por fome – ou pequenos furtos de alimentos e objetos, de valores irrisórios, para os quais normalmente se aplica o chamado “princípio da insignificância”.

Diante da gravidade da situação econômica e social do Brasil, o aumento de furtos desta natureza é uma hipótese provável, mas não há estatísticas do Judiciário, nos tribunais superiores e de primeira e segunda instâncias, que confirmem tal associação direta entre o crescimento desse tipo de delito sob a conjuntura atual. Alguns levantamentos de Defensorias Públicas mostram esse crescimento de delitos no pós-pandemia, como é o caso da Bahia.

O índice de insegurança alimentar do Brasil é superior ao da média mundial, conforme revelou pesquisa da Fundação Getúlio Vargas/FGV-Social, divulgada no final de maio. “A parcela de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento nos últimos 12 meses subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021, atingindo novo recorde da série iniciada em 2006. É a primeira vez desde então que a insegurança alimentar brasileira supera a média simples mundial”, diz trecho da pesquisa. Além disso, há hoje no país 11,3 milhões de desempregados, um cenário de espiral inflacionária de dois dígitos, e uma população em situação de rua que cresce a olhos vistos.

A gravidade é tamanha que o Brasil quase alcança o Zimbábue, país africano que tem o pior índice de insegurança alimentar do mundo (80% entre os mais pobres). De acordo com o estudo da FGV, houve um salto de 22 pontos percentuais no índice de insegurança alimentar do Brasil, quando considerados os 20% mais pobres: em 2019, era de 53% desta população, tendo atingido 75% em 2021.

Uma rápida pesquisa de jurisprudências no Superior Tribunal de Justiça aponta que existem 520 decisões monocráticas e 20 acórdãos sobre furto famélico. Já a pesquisa com o termo “princípio da insignificância”, geralmente invocado por defensores nesse tipo de delito (mas também em diversos outros casos judiciais), mostra resultados bem mais amplos: 56.393 decisões monocráticas e 7.260 acórdãos. Muitos desses casos acabam chegando à corte suprema do país: é possível encontrar pelo menos sete julgamentos de furto famélico desde 2012, e 888 casos referentes ao princípio da insignificância desde 1988.

“Não é difícil imaginar que as condições socioeconômicas do Brasil vão favorecer o aumento desse tipo de subtração, de furto”, afirma o defensor público federal Gustavo Ribeiro, que há anos atua em nome da Defensoria Pública da União (DPU) em julgamentos no Supremo. Crimes famélicos sempre foram comuns ao longo da história, afirma o defensor. “Mas é claro que andando nas ruas, frequentando supermercados, a gente vê um número cada vez maior de pedintes. A tendência é que essas condutas aumentem.”

Julgamento de 2004 no Supremo foi divisor de águas

Segundo Ribeiro, o julgamento de um habeas corpus no STF (HC 84.412), em 2004, cujo relator foi o então ministro Celso de Mello, foi o divisor de águas neste casos e embasou todas as decisões subsequentes da corte. O ministro definiu os requisitos para se aceitar o princípio da insignificância, como a ausência de periculosidade da ação, a mínima ofensividade do agente, a inexpressividade da lesão e reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento.

Faz diferença, portanto, se o agente é réu primário ou não, se agiu sozinho ou em grupo, se houve violência na conduta e, sobretudo, se usou alguma arma no furto, por exemplo. No julgamento de 2004, Celso de Mello e os ministros da Segunda Turma, em votação unânime, invalidaram a condenação penal e deram habeas corpus ao agente do furto. O procedimento penal contra ele foi extinto.

Mas esse entendimento está longe de ser unanimidade no Judiciário. Em 2020, por exemplo, no julgamento sobre o furto dos três pedaços de carne citados no início da reportagem, no valor de R$ 172,50, o ministro Marco Aurélio não concordou com a suspensão da ação penal. Os ministros Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, discordaram do relator. O caso foi polêmico, porque o agente do furto era reincidente. Ele não escapou da condenação penal e permaneceu preso.

A reincidência, explica o defensor Gustavo Ribeiro, muitas vezes afasta a insignificância. No entanto, ele observa que quem furta para saciar a fome ou porque precisa de itens para suprir necessidades básicas, como higiene, será reincidente pela dificuldade social: “Às vezes é uma pessoa em situação de rua, e ela tem fome. A fome volta. A pessoa não tem emprego, abrigo, nada, e muitas vezes há comprometimento da saúde mental. Mesmo assim, a gente não consegue aplicar o principio da insignificância.”

Em 2021, esse foi o entendimento do ministro Joel Ilan Paciornik, do STJ, que revogou a prisão de uma moradora de rua há dez anos, que furtou dois pacotes de macarrão instantâneo, dois refrigerantes e um refresco em pó de um supermercado, itens que totalizavam R$ 21,69. Mas no tribunal de Justiça, o entendimento foi de que ela era reincidente e, por tanto, a liberdade condicional não se aplicaria.

O termo furto famélico, explica o defensor federal, não é aplicável apenas à fome, “mas é também no sentido de atender às necessidades mais básicas dessas pessoas vulneráveis”. “A insignificância é extremamente casuística. Difícil vai ser traçar uma regra absoluta. Varia muito de caso a caso, e conforme também quem é o julgador”, diz o defensor federal.

Ribeiro diz que sempre usa o mesmo argumento nos julgamentos: “Quem subtrai peça de carne, uma bermuda, um par de chinelos, dois queijos, milho, um frasco de desodorante ou um pacote de fraldas, o faz para enriquecer? Subtrai pela imediata necessidade. Esse tipo de furto é muito mais um problema social de falta de oportunidade e desigualdade do que uma questão de cadeia. E pela situação brasileira, na economia e superlotação do sistema carcerário, tende a criar mais problemas. Não acho que a solução seja encarceramento. Mas não é incomum, infelizmente.”

Alimento como direito social

Na Bahia, a Defensoria Pública Estadual fez um levantamento de todas as audiências de custódia realizadas de 2017 a 2021 em Salvador, de casos de furtos famélicos. “Enquadramos como famélico furtos de materiais de necessidades de primeira linha, como alimentos, remédios, material de higiene, básicos”, explicou Pedro Casali, coordenador da Defensoria Pública Especializada Criminal e de Execução Penal da Defensoria da Bahia.

Em 2017, do total de furtos na capital 11,5% foram famélicos. Em 2021, a cifra saltou para 20,25%, mesmo com subnotificações geradas pela pandemia. “É muito difícil essa classificação, porque tem que olhar processo por processo. Aqui em Salvador, pelo menos, conseguimos fazer.” Segundo o defensor, “o Brasil está vivendo um momento de muito empobrecimento e não há oferta de serviços públicos adequados”. “O alimento como um direito social não é respeitado”, afirma Casali, enfatizando o alto índice de insegurança alimentar.

“No direito penal, o furto tem pena de um a quatro anos. Não vai resolver em nada a questão da criminalidade e do furto famélico. Não são pessoas dedicadas ao crime, elas estão precisando sobreviver. O direito penal não é para chegar a essa situação. Tem que ser o direito assistencial, a assistência social a essas pessoas.” Há, diz o defensor, um clamor público no Brasil pelo encarceramento e um ataque às audiências de custodia e institutos despenalizantes.

Em busca de uma base científica para algumas respostas

Em São Paulo, a Defensoria Pública se prepara para organizar um levantamento sobre furtos de alimentos em 2020, no pré-pandemia, até 2022. Um desafio, segundo o defensor público Glauco Mazetto, Assessor Criminal da Defensoria Pública do Estado. “Queremos aprofundar a pesquisa. Os dados aos quais tivemos acesso são insuficientes para chegarmos a uma conclusão científica se aumentou, diminuiu ou está igual [número de casos de roubos de alimentos]. Queremos uma base científica para essa resposta.”

Mazetto observa, ainda, que é preciso distinguir furtos famélicos de furtos de alimentos. “Furto famélico é uma expressão que tem aparecido na imprensa como sinônimo de furto de alimentos. Esse não é o conceito de furto famélico para o direito, em que ele é a subtração de bens para a satisfação de uma necessidade alimentar. Esse estado de necessidade tem uma série de requisitos para o seu reconhecimento.”

Ele reconhece que os casos de furtos de alimentos são inúmeros, mas pontua que na maior parte deles é complexo encontrar elementos para afirmar categoricamente se o indivíduo furtou porque não tinha condição nenhuma de satisfazer suas necessidades básicas para a alimentação. A discussão anterior, pontua, é sobre o princípio da insignificância do ato, para o qual já há entendimento no ordenamento jurídico. “Mas não tem consenso em relação a isso no Judiciário. A tendência a ser um critério objetivo, e não subjetivo. Mas está longe de ser algo pacífico, nada está escrito em pedra.”

A despeito dos entendimentos controversos no Judiciário, Mazetto assegura que a desigualdade social é elemento comum a todos os casos desse tipo de furto. “Enquanto tivermos desigualdade social, esse tipo de conduta vai continuar a existir em grande volume, em grande escala. Juízes e promotores enfrentam isso desde o inicio de suas carreiras.” Ele acrescenta que uma parcela do Judiciário “não quer aplicar o princípio da insignificância”.

O defensor ainda guarda na memória o caso de furto de alimentos que mais o sensibilizou, em 2013. Uma mulher roubou dois potes de leite ninho num supermercado da capital paulista. Ela tinha acabado de dar à luz e havia perdido o emprego. Além disso, tinha sido assediada sexualmente pelo ex-chefe. “O Ministério Público, na época, e o juiz concordaram com a absolvição. A moça estava totalmente desamparada, a encaminhamos para atendimento disciplinar. Ela precisava muito de amparo psicológico.”

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/furto-fam%C3%A9lico-fen%C3%B4meno-crescente-num-pa%C3%ADs-desigual/a-62015303

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