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WikiFavelas: O necessário aquilombamento digital

Dicionário Marielle Franco mostra o Brasil desconectado em zonas rurais e periferias. Acesso à internet é caro e, muitas vezes, os vizinhos dividem o wi-fi. Apesar do apagão, mulheres quilombolas resistem ocupando a sociedade midiatizada

Por: Ivonete da Silva Lopes e Jéssica Suzana Magalhães Cardoso | Créditos da foto: Acervo Meios. Oficinas na Comunidade Quilombola Buieié (2022)

Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui 1,32 milhão de quilombolas, residentes em 1.696 municípios. Sabe-se que territórios como os quilombos, periferias, favelas, aldeias e áreas rurais do nosso país ainda sofrem com diversas faltas de direitos, sejam elas educacionais, saúde, moradia, energia elétrica, água e tantos outros que ainda não foram garantidos a essas populações. Infelizmente, o acesso à internet não seria diferente, já que estes mesmos espaços de moradias populares são desprovidos deste direito.

Na semana do dia 8 a 12 de outubro, foi realizado em Japão, em Kyoto, o Fórum de Governança e Internet, que teve a participação do comunicador comunitário Raimundo Quilombola, representando a TV Quilombo e a Coalizão de Mídias Periféricas, Faveladas, Quilombolas e Indígenas. Na sua fala, ele colocou a necessidade de em espaços como estes debater políticas públicas referentes ao acesso à internet em territórios — como o Quilombo em que ele mora e atua no Maranhão. Disse também que, durante a pandemia, ficou sem acesso à internet, o que restringiu as possibilidades de se fazer uma campanha melhor de comunicação no seu território.

Para além do fato da falta de acesso à internet que dificultou a distribuição de materiais de comunicação, com a suspensão das aulas presenciais naquela época, ficou nítida a necessidade de registrar como estava se dando o processo educativo de meninas e mulheres nas favelas, periferias e, também, nos Quilombos, já que o cotidiano nos mostrou diferentes barreiras, algumas delas foram: falta de acesso à internet, falta de equipamentos adequados (computadores, celulares), dificuldades das escolas em adaptarem os conteúdos para o meio digital, falta de supervisão dos pais (para os menores).

Não por acaso, hoje se debate muito no Brasil o racismo digital e que a questão do acesso à internet nestes territórios está intrinsecamente relacionada à questão racial. Quando nos aprofundamos mais percebemos que existem outros grupos em maior vulnerabilidade, como, por exemplo, o caso das mulheres negras. Observa-se a iniquidade relativa à questão racial ao constatar que 52% das mulheres brancas têm no celular a única forma de conectividade, enquanto entre as mulheres negras esse índice sobe para 67%. Esses dados provêm de uma pesquisa realizada, no final de 2021, pela Fundação Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) para o Instituto Lula. É crucial destacar que esse estudo também ressalta que as pessoas e grupos excluídos digitalmente pertencem, em grande parte, aos mesmos estratos sociais já marginalizados por outras formas de segregação. Isso inclui mulheres, negros, grupos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, idosos, membros da comunidade LGBTQIA+, pessoas com deficiências ou corpos não normatizados, além daqueles que vivem em áreas pobres, remotas ou rurais.

Para além da falta de acesso à internet, também há o problema dos algoritmos — seja nos Quilombos ou em realidades de moradias precárias na cidade –, pois os conteúdos que geralmente chegam ao grande público não é de comunicadores ou influencers de quilombos, favelas ou periferias, é sempre de pessoas brancas: “Quero que meu trabalho chegue a mais pessoas, mas a gente sabe que o algoritmo pode atrapalhar. Uma coisa comum nas redes sociais em geral, é que o algoritmo é branco. Pra gente que é produtor, influencer preto, fica muito mais difícil de entregar o conteúdo de fato. Você faz algo foda, vem uma pessoa branca e reproduz, acabou. Por isso que sempre valorizo a rapaziada da minha área”, disse o DJ Swag no episódio 18 do Programa Papo na Laje.

Para terminar, destacamos que os desafios para garantir o acesso à internet e a literacia digital são ainda mais complexos quando se consideram essas interseções de desigualdades. Portanto, a promoção do acesso universal à internet não é apenas uma questão de infraestrutura tecnológica, mas também um instrumento de justiça social e igualdade, abordando as barreiras enfrentadas por grupos historicamente marginalizados. Abaixo, segue verbete em destaque de autoria de Ivonete Silva Lopes e Jéssica Suzana Magalhães Cardoso, que compõem o Grupo Meios (UFV), “Mulheres quilombolas, comunicação e resistência”, contando um pouco das experiências de literacia digital para mulheres quilombolas no Brasil. (Introdução: Gizele Martins e Larissa Moura)

Mulheres quilombolas, comunicação e resistência

A relação entre a população negra brasileira, comunicação e resistência vem de longe. Mesmo antes da abolição oficial da escravatura no Brasil (1888) e apenas 25 depois da chegada na imprensa no Brasil (1808), jornais negros começaram a ser publicados. Apesar das condições desiguais, os periódicos construíram uma “rede de solidariedade negra à qual interessavam a conservação de garantias individuais e a construção de uma voz coletiva direcionada ao fortalecimento do grupo” (Pinto, 2010, p.20)[1].

A desigualdade não ficou no passado. O acesso e apropriação das tecnologias da informação e comunicação (TIC) é mais uma desigualdade que se articula as precariedades de educação, saúde e outras que marcam os territórios periféricos, como os quilombolas. Apesar dessa iniquidade histórica e multifatorial, as mulheres quilombolas atuam para redução das desigualdades e melhoria da qualidade de vida das suas comunidades (Dealdina, 2020)[2]. A comunicação tem sido uma das dimensões da luta. Pauta o debate sobre os direitos, mobiliza coletivos e contribui para a renda das mulheres, por meio da divulgação e venda dos produtos das comunidades.

Relevante destacar que falar da apropriação das TIC envolve desde a posse de um dispositivo (celular, notebook e/ou desktop), acesso à internet e habilidades para produção de conteúdo, o que vamos chamar de literacia digital. Tratar da relação entre mulheres quilombolas e comunicação/TIC é lançar luz sobre a realidade local (Zona da Mata -MG) com articulação com pautas globais que abordam os temas igualdade de gênero, acesso à TIC e literacia digital como fundamentais para a consolidação da comunicação como direito humano.

TIC, direito humano e igualdade de gênero

Há mais de uma década, a Organização dos Estados Americanos (OEA) defende o acesso à internet como um direito humano à medida que pode assegurar outros direitos, como educação, saúde, associação, trabalho etc. A disponibilidade de conexão e uso das TIC se mostrou fundamental durante a pandemia da covid-19. Estar desconectado restringiu a possibilidade de obter renda, inclusive o auxílio emergencial pago pelo governo federal. Limitou também o acesso à educação e saúde, área na qual as ações governamentais, sobretudo em relação ao novo coronavírus, foram majoritariamente digitais.

Nessa perspectiva, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) também afirma que a promoção da literacia digital para a cidadania é intrínseca a garantia do direito à liberdade de opinião e expressão, estabelecido no Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos publicada em 1948. Ainda não se pode deixar de mencionar que entre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), o ODS-5 trata sobre equidade de gênero. Uma das metas é “aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres”.

Apesar desses indicativos, a internet no Brasil não é universalizada. As políticas de acesso à internet no país têm sido marcadas pela lógica de concentração e centralização de capital, bem como de utilização dos meios para perpetuar a estrutura desigual de poder no país, com marcadores evidentes de classe, raça, gênero e território, vistos interseccionalmente (Martins; Lopes; Dourados, 2021)[3].

A pesquisa “Fronteiras da inclusão digital” do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI. br, 2022)[4] ressalta que os entraves para conectividade estão concentrados nas populações residentes de áreas rurais, remotas e de difícil acesso. Segundo a publicação, nesses locais, o custo para a expansão da infraestrutura é alto, exigindo instalação e manutenção de torres de energia solar – para a internet via rádio, e a construção ou o aluguel de postes em uma grande extensão territorial – para a internet de fibra óptica.

Além das dificuldades para promover o acesso à internet impedindo o uso e apropriação das TIC, os moradores de territórios rurais enfrentam problemas como inviabilidade econômica, pouca capacitação e ausência da infraestrutura técnica necessária. Esse cenário interfere no uso e na apropriação das TIC pelas populações rurais do Brasil. Dados da TIC domicílios 2021 (CGI.br, 2022)[5], evidenciam que são essas populações as que realizam o uso mais limitado da internet, acessando por meio de único dispositivo (celular) ou se conectando somente por um tipo de conexão (móvel ou Wi-Fi).

A articulação entre gênero, raça e território faz com que as mulheres rurais brasileiras sejam o grupo menos “conectado” (ROTONDI et al. 2020)[6] e que as mulheres negras sejam a parcela da população que mais acessa a internet somente pelo celular (67%) (CGI.br, 2021). O que nos leva a concordar com o apontamento de Stevanim e Murtinho (2021, p. 128)[7] de que “a exclusão digital ainda permanece como um abismo que reforça as desigualdades sociais, étnico-raciais e regionais”.

Zona da Mata Mineira e comunidades quilombolas

A Zona da Mata-MG é uma área de ocupação antiga associada à expansão cafeeira e apresenta a estrutura fundiária menos concentrada entre as demais de Minas Gerais, estado que é o segundo com maior número de estabelecimentos agropecuários familiares do país (IBGE, 2018). É formada por 142 municípios que somam uma população de 2,3 milhões. A maior cidade da região é Juiz de Fora com menos de 600 mil moradores fixos. Entre os 142 municípios, 128 deles municípios têm população inferior a 20 mil habitantes.

Nesta região existem 21 comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares, entre elas a Comunidade Quilombola Buieié (Viçosa) e Comunidade Quilombola Corrégo do Meio (Paula Cândido).

Os dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) revelam que as variações de cobertura de sinal telefônico vão de 1,6% a 100% nos bairros rurais de Viçosa e há lugares atendidos com todas as tecnologias (de 2G a 5G), ao mesmo tempo em que existem localidades que somente recebem a tecnologia 2G. Nos bairros rurais da cidade de Paula Cândido, as informações são de que a cobertura varia de 0,02% a 99% e que, como acontece em Viçosa, existem bairros rurais contemplados por todas as tecnologias, e locais onde é oferecida apenas a tecnologia 2G.

Resistência pelo acesso à internet e apropriação das TIC

Fotos: Acervo Meios. Oficinas Literacia Digital Comunidade Quilombola Córrego do Meio (2023)

As formas de resistência das mulheres quilombolas para apropriação das TIC/comunicação envolve vários aspectos, a primeira delas, em algumas comunidades, é a luta por garantir a conexão à internet. Durante a pandemia, as lideranças femininas da comunidade quilombola do Buieié se mobilizaram para garantir o acesso à internet. A área rural onde está o quilombo é atendida somente por quatro fornecedores de internet, que cobravam preços mais caros em relação a área urbana de Viçosa. Com a organização liderada pelas mulheres foi possível negociar um pacote de internet com valor mínimo de R$69,90 ao mês e que foi adquirido por 15 casas da comunidade. Os traços de solidariedade e coletividade existentes na comunidade quilombola ampliam o número de usuários de internet, uma vez que é comum o compartilhamento da rede Wi-Fi com vizinhos e familiares (Lopes, Cardoso e Leal, 2022)[8].

Outra dimensão da luta e a organização para ampliar as habilidades para se apropriar das TIC. As mulheres da Comunidade Quilombola do Córrego do Meio e da Comunidade Quilombola do Buieié participaram nos finais de semana das oficinas de literacia digital desenvolvidas pelo Grupo Meios – Comunicação, Relações Raciais e Gênero, vinculado à Universidade Federal de Viçosa (UFV).

A literacia digital é a capacidade de se apropriar de ambientes digitais para criar conteúdo e produzir conhecimentos, adquirir informações seguras, produzir narrativas e ocupar espaços na sociedade midiatizada. Envolve a habilidade de utilizar as tecnologias disponíveis de forma consciente, exercendo sua cidadania e democratizando a comunicação. Baseado nesta abordagem, o Meios ofereceu oficinas de Fotografia, Canva e Redes Sociais.

 

Fotos: Acervo Meios. Oficinas Literacia Digital Comunidade Quilombola Córrego do Meio (2023)

Alguns apontamentos sobre a experiência

Três observações finais sobre a experiência das oficinas de literacia digital nas comunidades quilombolas. A primeira é a necessidade de políticas públicas que garantam o acesso à internet e à literacia digital como direitos fundamentais. Destaca-se ainda a necessidade dessas políticas adotarem perspectiva étnico-racial, territorial e de gênero. Os dados oficiais CGI apontam que a desconexão afeta mais as populações rurais, periféricas e as mulheres negras no Brasil, portanto a promoção da equidade no acesso às TIC precisa pensar nas especificidades desses grupos sociais.

Sobre as mulheres, interlocutoras neste trabalho, as lideranças dos territórios, se articulam para promover o acesso à internet e buscam desenvolver as habilidades de literacia digital mediante os entraves sociais e a inércia do poder público em relação as suas dificuldades. As oficinas de literacia digital, realizadas em ambos os territórios, foram uma demanda das mulheres que reconhecem as potencialidades presentes no uso das TIC. Em 2021, na comunidade quilombola do Buieié, onde as possibilidades de acesso à internet são mais limitadas, houve uma mobilização organizada pelas mulheres e lideranças para viabilizar a contratação de um serviço de prestação de internet pelo maior número possível de moradores do quilombo. Contudo, somente 15 casas apresentaram condições econômicas para adquiri o serviço. Os laços de solidariedade e coletividade, presentes tanto nas comunidades, aumentam as possibilidades de conexão à internet entre os moradores dos territórios. No Buieié é comum o compartilhamento da conexão Wi-Fi entre os vizinhos.

Fotos: Acervo Meios. Oficinas Literacia Digital Comunidade Quilombola Córrego do Meio (2023)

 

Por último, sobre nossa experiência. Nosso grupo é heterogêneo, formado por discentes com formações distintas, graduandos, pós-graduandos e doutores. Realizamos a atividade de extensão, as oficinas de literacia digital, associada à pesquisa. Isso tem sido desafiador, estamos aprendendo coletivamente como fazer extensão e pesquisa ao mesmo tempo. Temos refletido a cada etapa, muitas vezes o rumo precisa ser adequado em diálogo com as mulheres.

As oficinas têm sido bem avaliadas pelas mulheres, também porque são uma oportunidade de encontro, de conversas sobre racismo, gênero e de muitas trocas. O resultado tem sido enriquecedor, sobretudo em relação ao vínculo com as comunidades, esses são profundos e os laços não se rompem no final das oficinas. O principal resultado não se mensura, é o afeto. Seguimos em diálogo, no WhatsApp em reuniões e participando de outras atividades nas comunidades.

 

 

Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/wikifavelas-o-necessario-aquilombamento-digital/

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