Luta por superar a agrícola industrial é, ao mesmo tempo, uma prática, uma ciência e um movimento. A direita (e, às vezes, parte da esquerda) acusam-na de arcaica, anárquica e utópica. Talvez aí esteja, paradoxalmente, sua potência
Por Paulo Petersen e Denis Monteiro
A agroecologia tem sido definida a partir de três acepções interdependentes: como uma prática, como um enfoque científico e como um movimento social. Como prática social, ela se expressa nas variadas formas por meio das quais a agricultura familiar camponesa, indígena e povos e comunidades tradicionais organizam seu trabalho para a produção diversificada de alimentos e outros produtos agrícolas, por meio de processos cooperativos desenvolvidos em estreita interação com as dinâmicas ecológicas e socioculturais dos territórios nos quais se enraizam. Ao empregar abordagens sistêmicas e participativas, a agroecologia articula conhecimentos de fronteira de diferentes disciplinas científicas com saberes bioculturais populares. Ao mesmo tempo, apresenta-se como uma teoria crítica que formula um questionamento radical à agricultura industrial e ao regime alimentar corporativo. Em sua dimensão política, organiza-se como um movimento social emergente que articula sujeitos explicitamente envolvidos em sua construção prática e teórica, além de crescentes segmentos da sociedade que se acercam às suas ideias e experiências a partir de seu engajamento nas lutas por justiça social e ambiental, pela integridade ecológica dos biomas, pela saúde coletiva, pela economia social e solidária, pela igualdade entre homens e mulheres, contra o racismo e a LGBT+fobia e por relações mais equilibradas entre o mundo rural e as cidades. Sinteticamente, a agroecologia se afirma pela sinergia virtuosa entre prática social, teoria científica e movimento político, condensando em um todo indivisível seu enfoque analítico, sua capacidade operativa e sua força social transformadora.
Essa característica multifacetada da agroecologia, que tira partido e estimula a diversidade das práticas sociais locais para delas sintetizar princípios para a análise da realidade e para a ação coletiva se contrapõe aos protocolos formalizados e às concepções burocratizadas de comando e controle típicas da lógica da produção industrial que dominam as instituições científicas e políticas. Em certo sentido, advém dessa peculiaridade de um processo social emergente, que combina novas bases epistemológicas para a produção científica com novas pedagogias e linguagens para mobilização social e política, a dificuldade ainda encontrada para que a agroecologia seja compreendida e assimilada como estratégia de luta e emancipação social mesmo em parcelas importantes dos partidos e movimentos de esquerda.
Nesse particular, cabe lembrar que o domínio do pensamento positivista e do produtivismo economicista próprio das sociedades industriais não são exclusividade da direita. O uso dessas mesmas lentes de interpretação da realidade social compartilhadas em ambos os campos ideológicos, explica em grande medida a razão pela qual, embora atrativa e sedutora, a agroecologia permaneça amplamente assimilada como uma proposta arcaica, anárquica e utópica, portanto incapaz de oferecer respostas efetivas e na escala necessária para o equacionamento da grave crise sistêmica pela qual atravessa a humanidade. Ironicamente, as três características atribuídas à agroecologia são, ao menos em parte, verdadeiras. Mas não com a carga negativa imputada pelas lentes positivistas e produtivistas.
É arcaica porque dialoga com as culturas populares tradicionais, projetando-as ao futuro por meio do diálogo com saberes academicamente sistematizados. Superar a dicotomia entre o arcaico e o moderno é condição para que as memórias bioculturais sejam revalorizadas na heterogênese das agriculturas do mundo. Nas eloquentes palavras de Fernando Pessoa, isso significa que “a verdadeira novidade que perdura é a que retoma todos os fios da tradição e os tece fazendo um motivo que a tradição não pode tecer”.
Emboranão restem dúvidas científicas em relação a equivalência e, em muitas situações, asuperioridade dos níveis de produtividade física obtidos por métodos agroecológicos frente aos métodos agroquímicos convencionais, a retórica negacionista permanece vigente como estratégia de deslegitimação da agroecologia perante a opinião pública e o sistema político institucional. Umrecente exemplo expressou-se na manifestação do embaixador estadunidense na FAO, Kip Tom, durante evento promovido pelo Departamento de Agricultura dos EUA (USDA, na sigla em inglês). Para o embaixador, que também é executivo-chefe da Tom Farms, uma das maiores produtoras das sementes da Bayer/Monsanto, as iniciativas democráticas ecientificamente abalizadas da FAO de apoiar a agenda de institucionalização da agroecologia nas políticas públicas dos países representa “uma rejeição explícita à ideia de progresso”. Esse episódio reflete os frequentes conflitos de interesse que se manifestam nesses espaços institucionais nos quais questões públicas cruciais são debatidas e politicamente encaminhadas. A retórica do moderno contra o arcaico segue como poderoso artifício discursivo para justificar o rechaço institucional à agroecologia. Como agudamente identificouEric Holt-Gimenez, sob essa cortina de fumaça narrativa estão os três “pecados da agroecologia segundo o capital”: dispensa os agroquímicos, baseia-se na biodiversidade local e fortalece a agricultura camponesa.
É anárquica, porque atribui elevada importância aos processos locais de auto-organização da sociedade civil. Esses processos se expressam nas redes multi-atores de âmbito territorial responsáveis pela construção de economias de compartilhamento e defesa de bens comuns, assumindo assim um papel importante na governança de sistemas alimentares descentralizados. Mas esse caráter anárquico é relativo, uma vez que não são redes organizadas a partir de perspectivas de localismo defensivo e hostis às sobre-determinações derivadas dos processos de integração econômica e cultural em escalas geográficas mais agregadas. Ele é aqui ressaltado apenas para explicitar o necessário contraponto com a lógica imperial autoritária atualmente dominante na governança global da agricultura e da alimentação. Nesse sentido, a agroecologia estabelece uma relação de reciprocidade com a democracia. Ao mesmo tempo que contribui para democratizar os sistemas alimentares, depende de um ambiente institucional democrático para que suas práticas floresçam e se desenvolvam. Por essa razão, a vigência do Estado democrático e de direitos é condição indispensável para a criação de espaços auto-organizados nos quais economias de proximidade, base da economia social e solidária, poderão ser experimentadas e desenvolvidas.
É utópica, porque se orienta para impedir a confirmação dos futuros mais prováveis ao militar por um devir histórico na direção a futuros desejáveis. Não se trata de uma utopia irrealizável ancorada em proposições idealistas e inexequíveis. Trata-se, antes, de reconhecer o vigor da força social latente e invisibilizada da agricultura familiar camponesa em aliança com outros segmentos sociais interessados em assegurar alimentação saudável, condições ambientais equilibradas e sociedades mais justas e harmônicas. Uma força real que projeta futuros desejáveis já em gestação em várias partes do mundo. Essa força pode ser acionada e desenvolvida se articulada localmente com movimentos de consumo alimentar consciente. Nunca é por demais recordar a máxima de que “comer é um ato político”.
Caminhar na direção desse horizonte utópico implica a necessidade de reconhecer que o caminho não será iluminado por forças vanguardistas portadoras de uma teoria universal revolucionária. As forças de transformação estão presentes na miríade de práticas sociais contra-hegemônicas voltadas à reterritorialização dos sistemas alimentares. Por meio de redes locais de produção e abastecimento alimentar são construídos crescentes graus de autonomia face aos modos de produção e distribuição comandados pelo capital. É nesse sentido que a agroecologia apresenta-se como uma poderosa estratégia para “fissurar o capitalismo”, tal como propõeJohn Holloway, para quem “a única maneira de pensar em mudar o mundo radicalmente é com uma multiplicidade de movimentos intersticiais fluindo a partir do particular”.
Para que se tornem realidade, futuros desejáveis precisam ser imaginados. Além disso, os caminhos que nos conduzirão a eles não estão dados a priori. Precisam ser inventados. Isso exige criatividade na luta política para que os obstáculos institucionais e culturais que impedem os avanços na direção imaginada sejam removidos. O Brasil é portador de rica experiência no campo da agroecologia. A grave crise atual é o momento para que os aprendizados dessa experiência sejam resgatados para inspirar essa invenção coletiva.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/agroecologia-ou-colapso-3/
Comente aqui