O que a agenda devastadora do agronegócio tem a ver com o golpe de 1964. Que trauma levou a República e a esquerda a esquecerem a reforma agrária – e darem asas a uma coalizão retrógrada que trabalha sem descanso pelo fim da democracia
Por Débora F. Lerrer| Imagem: Sebastião Salgado
A partir do Golpe de 2016, a política agrária passou a ser enunciada pelos agentes contrários à democratização da terra, que visam desmantelar as conquistas, em termos de legislação agrária, da Constituição de 1988. No dia 4 de dezembro de 2020, um dos fundadores da UDR e representante dos grileiros do Pontal do Paranapanema, Nabhan Garcia, publicou uma portaria que terceiriza para os funcionários municipais a regularização e checagem dos dados fundiários, hoje atividade exclusiva dos técnicos do Incra. Abre-se margem para uma avalanche de regularizações de grandes extensões de terras griladas, visto que muitos destes “invasores” são prefeitos ou políticos influentes destes municípios1. Garcia quer mostrar serviço. Ao nomeá-lo secretário especial de regularização fundiária do Ministério da Agricultura, Bolsonaro simplesmente colocou a raposa para cuidar do galinheiro. Só a classe média neste país vive no sistema registro de imóveis. Talvez nem ela. O fato é que pobre só consegue alguma terra “invadindo”, enquanto os ricos, mais influentes e bem escoltados por suas quadrilhas armadas ou não, invadem muito mais, para acumular poder político e econômico. Para entender o tamanho do butim que está em jogo, estima-se que praticamente a metade do território brasileiro é constituído de terra pública, que não necessariamente vai gerar riqueza para esta sociedade tornando-se propriedades privada, usualmente concentrada na mão de poucas pessoas.
A hipótese deste trabalho é que esta ofensiva política descarada de Nabhan Garcia se tornou possível porque existe um recalque da sociedade brasileira em torno de sua questão agrária. Ele é resultado do enquadramento de memória que se estabilizou a partir do Golpe de 64 e se associa aos efeitos concretos da “modernização conservadora” da agricultura por parte da ditadura empresarial-militar. Por esta razão, os atores mais poderosos dos governos de coalizão do PT contribuíram com a fragmentação das lutas pela terra, esvaziando seus ganhos concretos e revelando a incompreensão da centralidade estrutural da questão agrária na administração política das contradições sociais do Brasil, o que favoreceu a ascensão de forças reacionárias ao poder.
Esta constatação aumentou a partir do Golpe de 2016 que impôs, desde então, uma série de medidas de desmantelamento e afrouxamento das políticas agrárias e ambientais do país a partir do interesse dos setores da Frente Parlamentar Mista da Agropecuária(FPA) , que junto com o IPA (Instituto Pensar Agropecuária) tornaram-se um lobby poderoso e profissionalizado que consubstancia o que o antropólogo Caio Pompeia denominou de “concertação do agronegócio” (2018). Durante os governos chefiados pelo PT, particularmente a partir de 2007, houve relativo silenciamento público e uma espécie de exílio da expressão reforma agrária nos debates políticos, fazendo dominar neste campo as expressões agroecologia e agricultura familiar, que não endereçam prioritariamente a questão agrária em suas consignas, escanteando destes grupos sociais a prerrogativa da ofensiva nesta temática e, por consequência, sob meu ponto de vista, diminuindo seu peso político e social.
A hipótese base deste artigo é que isto ocorreu por que há um recalque na sociedade brasileira com relação a seu problema fundiário.. Freud criou este conceito para dar conta de um tipo especial de esquecimento, pois é um mecanismo de defesa contra lembranças desagradáveis ou incongruentes, que tem efeitos na vida dos sujeitos.. O recalcado retorna como sintoma, pois tudo que não é elaborado tende a voltar como sintoma. E como este é um problema mal elaborado de um país de território continental, provoca efeitos nefastos no sujeito social coletivo que constitui este povo. É isto que, a meu ver, explica a falta de centralidadade da questão agrária no debate público brasileiro, mesmo no campo das esquerdas.
O Brasil possui 850 milhões de hectares com uma das mais altas concentrações fundiárias do mundo. Dados do último Censo Agropecuário, de 2017, indicam que a concentração de terra aumentou nos últimos 10 anos. Agora, 1% dos proprietários de terra detém 47,5% do território brasileiro. No Censo anterior, de 2006, a marca já era alta, pois 45% do território estava nas mãos de 1% dos proprietários. Artigo recém-publicado e resultado do esforço de uma rede de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, que processou e organizou de maneira inédita 18 bases de dados diferentes de terras públicas e privadas do Brasil, demonstra que 97 mil propriedades de mais de 15 módulos fiscais detêm 21,5% do território, muito mais do que os 13% até então preservados de territórios indígenas. Além disso, há, pelo menos, 176 milhões de hectares de terras privadas sobrepostas a terras públicas, ou seja, ilegalmente tomadas por proprietários particulares (Sparovek, et al.2019).
Saiba mais em:https://outraspalavras.net/descolonizacoes/recalque-da-questao-agraria-brasileira/
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