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Celso Amorim vê o desastre diplomático brasileiro

País perde oportunidade histórica com a China, que precisa de parceiros no Sul Global. Isolado, Itamaraty vê parcerias de Pequim deslocarem-se para África e Argentina. Pária, arrisca-se a perder laços históricos também com Índia e Rússia

Celso Amorim, em entrevista Ricardo Muniz, na Revista ComCiência

Como a China deve sair da pandemia posicionada geopoliticamente?

Primeiro, já estava previsto. Mesmo antes da pandemia já era previsto que a China despontaria e se tornaria a maior economia do mundo. Já é, em termos de poder de compra. E deve passar ao longo da década, se não houver nada excepcional, em termos de preços de mercado. Então será, sob qualquer critério, a maior economia mundial até o fim desta década. Isso tem um impacto muito grande. Quais as consequências disso é uma outra questão. A pandemia acelera esse processo. Claro que é difícil prever tudo, porque o Biden pode fazer algo em relação à crise climática, por exemplo, e atrair investimentos. Tudo indica, pelo que aconteceu até agora, que esse processo [de predominância chinesa] vai se acelerar. Além dos dados econômicos brutos, temos de pensar em questões mais sutis, políticas. Por exemplo, os EUA nos últimos anos – e não estou falando só do Trump, o Trump foi um paroxismo – não tomou grandes iniciativas, enquanto a China já estava articulando a Nova Rota da Seda. Não estou fazendo nenhum juízo de valor, mas o Estado chinês tem mais poder para direcionar. Nos EUA, por exemplo, é muito difícil direcionar recursos para a cooperação internacional. Na China há mais margem para isso. O outro ponto é a influência da sociedade: a maneira como a China controlou a epidemia internamente levanta a questão de qual é a melhor forma de organização social e política. Simplificando: a gente quer ter liberdade para fazer o que quiser ou uma organização mais solidária? Eu não estou fazendo juízo de valor, mas acho que cresce a atratividade chinesa, tanto pelo lado econômico, a resiliência durante crises (a China cresceu em 2020, ano que em todas as economias afundaram!), quanto a capacidade de lidar com uma grande ameaça à vida. Por tudo isso, sai muito fortalecida no plano internacional. Países importantes como a Rússia já perceberam isso e estão tentando se alinhar.

Agora sob Biden, qual vai ser a reação do poder estadunidense a essa ascensão quase irresistível da China? É possível imaginar a China tomando o posto dos EUA, como a potência global?

A época da hegemonia americana acabou. Aliás, o próprio Obama já tinha percebido isso. Que eu saiba, foi a primeira autoridade norte-americana a falar em multipolaridade. Bem, se vai ser multi ou bipolar, é uma coisa que podemos discutir, mas é inevitável que essa projeção geopolítica da China (sem falar que está aumentando seu poderio militar, ainda que ainda não seja comparável ao de EUA e Rússia) fará com que o país tenha mais influência nas decisões internacionais. O Obama disse que o principal fórum internacional era o G20, onde a China, dentro dos BRICS, já tinha influência. Quando o Trump diz que a China tem muito peso na OMC, tudo bem que ele é um paranoico, mas esse processo é natural: obviamente a China vai ter mais presença. Acho até que, pensando na extensão do que já poderiam fazer, são bem cuidadosos. Ela sempre se coloca como uma potência que não é hegemonista, critica o hegemonismo, mas vamos ver o que a realidade indica, não quero fazer previsões nem negativas nem positivas. A China tem um histórico, mas cada momento histórico tem suas características: o capitalismo comandado pelos europeus teve suas características, o imperialismo ou a hegemonia norte-americana teve suas características, a eventual hegemonia ou domínio chinês terá suas características. Vou reproduzir um comentário do Biden: “competição acirrada [com a China] sim, conflito não”. Essas coisas podem até escapar ao controle, mas a tendência é essa.

Qual é o caráter do Estado e da sociedade chinesa? A China é comunista mesmo ou é outra coisa?

São palavras, não é? O próprio Marx, salvo engano, tem só dois textos em que menciona como seria a sociedade no comunismo: Crítica ao programa de Gotha e A Comuna de Paris. Acho que ele tinha a ideia de uma coisa maior, uma influência direta dos trabalhadores, das massas, nas decisões. Não estava tão preocupado, como nós estamos, com o papel do Estado na economia. Acho que há sim, muito mais do que na Rússia, uma presença do Estado muito marcada, mas também alguns dos maiores milionários do mundo. Não sei se Marx diria que a China é comunista com parte dos maiores milionários do mundo. Há uma direção central muito forte, tenho a impressão de que os capitalistas são muito poderosos na área econômica mas não ditam os rumos da sociedade. O partido comunista mantém o controle e há a busca de uma distribuição de renda. Também há muitos problemas, a China continua com muita desigualdade. A presença do Estado na economia e sua capacidade geral de direcionamento são suficientes para definir o país como comunista? Eu não sei. A realidade desafia um pouco os conceitos.

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